Memória

Contos Fantásticos III - Memória

Num dia qualquer, quando a fábula já havia morrido, alguém caminhava com os pés no silêncio da lágrima. Era madrugada, mas o deus do sono estava adormecido, ou talvez, aprisionado. Seus pés langues e encobertos de escuridão rastejavam pela névoa com uma cicatriz exposta e um riso irônico nos lábios. O manto negro que caia da cabeça balançava umidamente ponderando-se nas costas. Uma moeda subia e descia sobre os dedos. Sua estatura oriental contrastava com a altividade do céu azul e solitário. Na negritude, alguém brilhava por entre o verso.Uma pena de prata caia do pescoço pendendo-se em um cordão de mesma matéria. Uma lua minguante bailava nas mãos de Saturno, e um lobo perambulava na vastidão do abismo da embriaguez. Este, subiu com suas botas encouraçadas até um grande monte, adentrando a caverna que ali estava exposta e vendo assim, uma estátua quebrada.

Um sussurro penetrou a profundidade e os ecos diluídos voltaram aos ouvidos. O lobo aproximou-se dos pedaços que ainda restavam da figura marmorea e encostou os dedos na rocha fina e fragilizada que suave fazia o contorno de uma pessoa. De seus lábios saíam suspiros e arfares tristes do tamanho do esquecimento reconcebido. O canídeo abaixou-se ainda mais, estando com os pés na altura das patas da estátua, com os olhos conseguiu perceber no chão uma pena.

A pena era negra e solene, o ar envelhecido e soturno, digno daqueles que habitam os céus da noite, cobria a pequena e frágil estrutura. Este cheirou a pena, e o ar da memória penetrou os pelos e os sentidos... Quanta saudade! Quanta lindeza e poesia adentravam com aquele odor secular... Ah, divindade amiga de Loki! Seus olhos se inundaram e o corpo afundou-se no sentir ininteligível. O que havia se perdido e quanto tempo houvera passado? Por que tudo agora soava e cheirava à vazio e pranto? - Por quanto tempo eu estive fora? - Uma voz fraca e perdida...

Seus olhos perfuravam o breu e lancinavam o azul e a lua, um ardor tomou conta do ser e um uivo novamente rasgou o céu, que agora, era de Maio. Seus olhos podiam enxergar os olhos do outro. Seu corpo se arrastou para a luz e com a pena 'inda entre os dedos, o ar de ironia foi expelido com a brisa da Memória. Uma figura se fazia à sua frente. Os olhos mantinham-se na distância e no horizonte, e a silhueta acoletada, de mangas rubras, luvas de meio-dedo e com um nome escrito em um alfabeto ilegível afastou para trás as orelhas pontudas que se situavam acima da cabeça, levantou levemente o rabo que mantinha-se prostrado no chão. Seus lábios fechados cantarolavam e espremiam frases e tons, o lobo adiantou o passo, e jogou-se do penhasco, deslizando por entre as rochas.

Quando a fábula já havia morrido e alguém caminhava com os pés no silêncio do passado, o deus do sonho despertou.

R Duccini
Enviado por R Duccini em 28/05/2009
Reeditado em 26/06/2009
Código do texto: T1619287