Ser-me

Deveria haver uma escrita que desse conta de todo o vivido. Ou uma imagem, despida de figuras, talvez, algo da ordem do vir a ser que pudesse falar da nossa capacidade de ser na vida. Mesmo que por um instante duradouro.

Uma expressão artística como um fluxo entre o sofrimento que não se transformará em signos decodificáveis e um signo redentor, aquele que pudesse ser apreendido por todos que estão no mesmo barco da inexpressão. Um signo imemorial que fala do passado e dos amálgamas que criamos na fôrma desfigurada da curva elíptica do tempo.

Sou-me. Falta-me tanto que ainda sou. Falta tanto do outro que ainda o procuro. Vejo sinais de vida em nós, apartados, todos, a humanidade em uníssono, flagrada em sua decrepitude ou solitude.

Nossa!, como deveria ser possível a todos nós a expressão última, afago de alma em desespero de se recompor pelo entendimento que há de nos faltar. Esquinas com ponto de intersecção onde alguns, no mesmo cais, dividiriam barcos, sementes e maresias.

Fico à espera. Fico á espreita, como um ladrão à espera de sua presa. Todo mundo é caçador? `A cata daquele vazio a se tornar sentido em cada insumo que produzimos de nossas vísceras.

Ou a solidão. Aprendamos com ela. Com as imagens abstratas, com o poema sem palavras. A experiência aleatória e fragmentária numa dança de bacantes recobertas de vinho e sal. Sal para aplacar a secura de nossas bocas sedentas de chão.

Não, não há nada a não ser escrita automática? Penso no que meu leitor faria com estes resquícios de idéias perambulantes nesta página. A imaginação SIM fala da falta. Preciso desta companhia senão pereço como um funeral de lagartixa sob a sombra de uma folha seca.

Se eu escrevo e alguém pensa que há um todo onde aí se completa, divago. Há um movimento de pó e de vertigem entre nós, há algum ponto de contato esfacelado como na religião ou na política. Há no ir da poesia e da prosa algo de universal porque tudo é mudança mesmo que de tão sutis envelhaçamos com dificuldade de se lançar a Kairós, deus da desproteção, puro carinho.

Pronto, achei um ir. Irmos, encontros pálidos de desejos tão disparatados. Fomos de alguma forma, não?

E o que fôra? Ainda conosco, como um atropelamento automotivo. Vamos adivinhar o que ser-mos?

Adivinhação, divina interseccção! Fronteira entre o que é e a nossa capacidade de produção de ser... Sou uma adivinha, presa fácil de qualquer oráculo onde ronda o mistério que se sobrepõe com a enorme grandeza de vida, pouco a dizer ou muito a provocar. È sempre assim, não?