Lembranças essenciais

Antes de nos descobrirmos

éramos puros e bobos

inéditos e triviais

pouco mais que crianças

um pensamento funcional

um desejo pueril

uma malícia oral

e ficávamos a ver estrelas

até que hipinotizados

indefesos e incautos

ante a magnitude de um cometa

desabrochamos e trocamos de pele

e cresceram asas em nós

e voamos para longe da aldeia

e já não éramos inocentes.

Você se lembra ?

Vagamos em protesto a tudo

quanto alcançava nossa miopia

contra a fome, miséria, dor, o silêncio

a falta de liberdade, a ditadura

o amor prisão, a solidão, o ódio, a ausência

e estávamos em todas as reuniões, passeatas, caminhadas

e, quando convocados, a saraus, luaus, corriolas

caminhávamos livres, dormíamos nús, irrepreensíveis.

Fumávamos e bebíamos.

E nos tornamos bichos racionais

e podíamos ser assim apaixonados pelo mundo

e nos amávamos muito, infinitamente.

Você se lembra ?

As palavras nos envolveram em discursos

a história bebida nos embriagou e viciou

E veio uma grande onda de incertezas

E vieram crias e a realidade se distorceu

num tempo difícil de crueldades

a razão era loucura da razão

e conhecemos o mal

um déjà vu do Éden

nos expulsou do sonho

Você se lembra ?

E nos perdemos por um longo tempo

traídos pelas convicções

soltamo-nos as mãos

os caminhos se multiplicaram

caprichosos e sinuosos

até vagarmos sob o sol da sobrevivência

perseguidos pela mediocridade.

Que ela nunca nos alcance

porque nos restou vaidade intelectual

e é mesmo o que nos resta

a herança, o despojo que deixaremos

e em nossos jazigos escrevam:

"apesar dos próprios erros, da aridez desta terra

e da maldade dos homens"