capitão Velho

as teias de tempo que as lâminas do mar lhe desenharam na cara. a pele que o sol continua a queimar sempre que existe. os olhos demasiado fundos para sorrir. as mãos cortadas pela linha. lá dentro, onde o sol e o mar não chegaram, foi o álcool, o amor e o diabo que o consumiram. hoje, aquele que rimava com tudo o que mexe em poemas de amor, já quase não existe.

como se as horas coagulassem um passo antes do sono, um espectro de sangue difunde-se febril pelo interminável quadriculado encefálico dos dias. os espinhos nos braços da alma incendeiam demoradamente o corpo, destilam gestos resignados que só a fome e a sede permitem repetir. as mãos já não são o que eram, as mãos já não são sequer as mãos, mas a memória axiomática dos dedos, e as lágrimas petrificadas à boca da memória, continuam como alentos únicos para o caminho entre o abandono do lar e o regresso aos olhos que brilham no leite e na torrada sobre a mesa. ele já não consegue lembrar-se se foi no ventre ou nos lábios, daqueles músculos de mel que em minutos secretos o protegiam do vento que fazem as sombras, que leu um dia que ao amor poderia encontrá-lo em noites de chuva, mas a pele, seca e queimada pela ausência, lembra-lhe sempre que há muito não chove. a semente que o mantém acordado, também o adormece.

agora, que os olhos o abandonaram, que as imagens são todas de ontem, já nem o mar consegue nadar-lhe no corpo.

hoje poderia ter sido um dia qualquer. um dia no mar ou preso ou a distribuir o pouco que lhe sobrava pelos restos de gente. dos olhos tenho a certeza que hoje por lá andaram, pela vida toda: pelo pinhal, pelo mar, pela ilha, pelo fogo, pelo sol, pelas celas, pelos mortos e pelos vivos como nós. mas a traição do corpo impediu que este fosse um dia como outro qualquer. hoje, ouve-se ao longe o carpir das ondas contra a praia que era a dele: Capitão! Capitão!

Luís Abreu
Enviado por Luís Abreu em 16/08/2006
Código do texto: T218145