FÊMEA MADRUGADA

É noite.
Silenciosa e mansa, a madrugada cai do varal em que estava secando.
Os amantes se pensam, cada um no seu lugar.
As saudades, de todos os tipos, invadem os travesseiros.
No meu caso, não sei qual é o caso, mas estou calmo e isso é bom.
A madrugada está pronta, seca e passada. Basta vesti-la e calmamente irromper
Baile adentro.
Meu pensamento todo se resume a
Um quadro, um cenário vivo e alegre com olhos enormes, que ri, me diverte, me come...
E olha pra mim.
Um cenário vivo, multicor e feminino,
Plácido e pequenamente misterioso.
Mistério bom é mistério pequeno.
Pouco mistério é saboroso.
Muito mistério é ausência, é insuficiência...
Mas, como um pouco de contentamento é sempre bom,
Ainda bem que eu gosto dos meus dois companheiros que chegaram agora à noite:
O frio e a solidão.
Estou perfeito nessa roupa de madrugada, seca, passada, sem água e sem mágoa.
Sou o par perfeito para o frio e para a solidão.
Eu e meu cenário-mulher. Que anda, que canta, que arrota onde quer, onde vive...
Que quando me olha me faz enredo, me bota no jogo, me dá um toque.

Fêmea madrugada, acolhe teu macho cansado.
Recebe esse sol que te trago.
Repousa no peito abstrato.
Sinta essa gratidão poética
E fica!
Fica onde você não sabe que está.
Sinta o que você não ouve de mim.
Segura na mão que eu não te dou
E acolhe o tremor e o suor frio e aquece este corpo que o teu corpo acalma.
Sinta em forma de poema o que tu deixas, o que tu dás, o que tu és...

Se nessa hora tu tens frio, tu tens solidão, saiba: tu és mais que isso.
Tu és cenário, és madrugada, és fêmea...
E quando você ler esse texto, com teus olhos noturnos, mesmo que seja de dia,
Lembrar-te-ás da madrugada amiga que você me deu
E eu derramei gota a gota no seio desse papel-poema não lido,
Filho da madrugada, da madrugada fêmea,
Nosso filho...