Prosa para tempos de eleição II

Aos domingos, quando o meu vizinho não escuta os seus pagodes no último volume, posso ler no meu jardim. Os colibris sobrevoam as roseiras sedentos, loucos por uma aguinha com açúcar - um pseudo-néctar que a gente põe num bebedouro de plástico a fim de atraí-los, enganá-los e iludí-los. Sabe qual?

Fico horas observando este bebedouro. É o tipo da artimanha de raposa que se aplica a todos os planos da vida de um país. No plano político, por exemplo, especialmente em época de eleições, a carência de dentadura tem tudo a ver com a necessidade de votos. Então, candidatos e eleitores se entregam como núbeis e, entre tapinhas nas costas e beijos, as promessas rolam. Os dois se unem, numa confraternização natalina, tão maquiavelicamente suspeita quanto o tal recipiente a que me referi. Nessa época, tudo pode acontecer no terreiro. É possível até ver águias subindo morros, comendo angu-à-baiana, com uma criança mijada no colo; e jurando pela mãe de qualquer um, mortinha, que promessa é dívida.

Mas a grande verdade é que, de eleição em eleição, essa estória se repete, sem maiores transformações para a grande maioria que habita o terreiro. As coisas permanecem sempre do mesmo jeito. De vez em quando, um barraco desaba por força da natureza. Mas não há nenhum eleito com primeiras nem segundas intenções de dar os mesmos Passos do Pereira contra esse tipo de peste arquitetônica que grassou pelo país. É o maior monumento do mundo! A maior de todas as alegorias. Enfeita telas, cidades, cinema, música popular... O morro é uma escola de samba, o reduto das bocas que puxam o samba; e também dos passistas que desfilam na Unidos do Canteiro de Obras, cujo enredo é sempre o mesmo: "La Dolce Vita!" - não se cansam de homenagear o patrão.

Vida longa ao terreiro! Eu prometo! É o que diz o já empossado, exaltado como um poeta do século XVIII. No Paço, passado o ato cerimonioso, o dedicado amigo se entrega, de corpo e alma, à execução de projetos responsáveis pela perpetuação do modelo sócio-econômico. São eles o Cheque-esmola, o Bolsa-esmola, a Educação-esmola, a Cesta... Enfim, o CTI da miséria que revitaliza a artéria aorta e o entusiasmo do folião que empurra o carro alegórico na avenida. Vez ou outra, cai um folião na contramão, atrapalhando o tráfego... ou a engrenagem do carro, que de tão usado, pifa e impede a passagem da Ala dos Faraós. Mas o que é que as eleições têm a ver com isso?

Quanto ao bebedouro dos colibris, eu assumo a minha máxima culpa, porque, ao mesmo tempo que promove um espetáculo gratuito, tão agradável aos meus olhos, também provoca uma questão palestina entre as aves que habitam o meu jardim e outras invasoras. E o resultado é Colibri X Pardal X Bem-te-vi, um bicando a cabeça do outro pela posse do bebedouro. Deviam também dar uma bicada na minha. Indiferente à Teoria Malthusiana e ao Manifesto Comunista, não distribuo mel suficiente pra uma população que me diverte e aumenta a cada dia. Sendo que na minha despensa, costumo ter mais de dez quilos de açúcar só pra mim.