O medo do desconhecido

Entre uma saída e outra na porta da rua para boas baforas, já que no espaço de trabalho era proibido fumar, tudo aconteceu. Era um dia comum e o calor esquentava o corpo, secava as bolhas de suor e provocava uma inquietação irritante. Os olhos piscavam sem controle e a claridade acentuava as marcas da idade. Desceu paulatinamente cada degrau de acesso a calçada e abrindo a porta saudou a vendedora de balas em seu carrinho.

Tinha o cigarro em mãos e não tinha se dado conta de ter esquecido o isqueiro. Enquanto a mão batia os bolsos à procura do objeto e também entre os seios, fartos seios procurava porque ali também costumava guardar, uma mão risca no ar o fogo que segue ao encontro do cigarro posto na boca anteriormente. Momento inesperado da ação do encontro dos olhos:

_ Se o problema for fogo, eu posso resolver.

Palavras ímpares para calar o momento, congratular aquelas horas passadas ali entre passantes, apitos e gritos alucinados. O cheiro forte da fritura, os gritos do cambista e a temperatura escaldante. Os olhos encontrados e a voz ressoando... É fogo, se for fogo, quer fogo... fogo.... E a coisa resolvida.

Era ponte de ônibus aquele recinto e o semblante do gesto se foi na primeira condução que abordou ali, se foi disparado, partiu como havia chegado e enquanto queimava o cigarro aceso pelo lado contrário, tinha gosto especial como nunca havia desejado tanto que demorasse, prolongasse o andamento necessário para ficar patenteado na sua recordação prenda tão briosa. Somente o gosto sentido na vida que brotava pelo goto dado de saliva seca, garganta adentra. E a suavidade da emoção a desenhava bailando parada no ar como cena de cinema clássica.

Baixou o gesto suave do braço erguido a boca. Deixou-o caído ao longo do corpo entorpecido de um desejo lascivo, penetrante e a carne dos membros inferiores rugia em tremedeiras no compasso do coração que batia involuntariamente, enquanto passava pela retina imagens latentes, de olhos que se encontram e se sentem unidos de vidas eternas. Não conseguia mover-se porque os olhos iam firmes em direção ao ônibus que se perdia no meio de tantos outros veículos e fumaça e prédios e cidade de pedra. Dobrava a esquina e deixava em devaneios os pensamentos daquela que não percebia que o cigarro havia queimado até a morte. Naquele momento nada mais restava entre ela e o desconhecido.

Bocejou a boca levemente e sorriu de si. A estranheza de estar vestida e sentir-se nua. As mãos geladas e a vontade de sair sorrindo com medo do desconhecido, porque a vida é o desconhecido que habita na esfera do ser. Quem era? Não precisava responder apenas conduzir as mãos ao rosto e tocá-lo. Morder os lábios e sentir o gosto da maçã que acabara de morder. Provar do fruto proibido e se permitir proibida. Ato da criação pelo fogo, e só pelo fogo passar a ser, ter existência como a voz que sopra: faça-se a vida e assim nascer. A quebra dos pudores e se viu ali no meio de uma multidão sedenta de tantas coisas.

O que queria finalmente? Ser sopro e voar? Criar asas e sair em desespero em busca da voz que a tornou do sono que dormia? O estágio da memória de desarrumação? Ela era e sendo tinha algo que procurava descobrir. Tocou os seios e os viu avantajados mais que o normal. Apalpou ali onde se encontrava e se viu refletida na sombra do chão. Teve vontade de sentir o calor que se afetava entre as pernas, mas a buzina do carro da funerária vizinha a vez voltar.

Voltou para sala sombria onde trabalhava como se tivesse visto passarinho verde e trazendo-o no dedo ia cumprimentando a todos com bom dia, lindo dia, dia bom, encantado. Um sorriso largo escancarado a estampar a face antes tão melancólica, pálida, soberba, taciturna. Uma estranha alegria que chegou a incomodar os demais. Enquanto uns tomavam cafezinho, beliscavam biscoitos ou brindavam pequenas taças de licor, não se cabia em si e sorria para si, de si, mergulhada num espaço particular. Era a redenção de si e pensava na fumaça que desenhava no ar figura sem sentido, tragada, viajando cada órgão interno do seu ser. A fumaça que era saboreada, que estava em si e vinha para o mundo exterior em formatos diversos. Queria gritar e apontou a língua para o chefe que se encontrava no gelágua e como não bastasse puxou a peruca da amiga que estava de frente e beliscou a bunda do Office boy que no momento exato se curvava para entregar correspondência a recepcionista.

O ambiente tornara-se diferente e neste momento aquela responsável pela limpeza, abria a janela, deixava entrar nova brisa pairando sobre o ambiente pasmo, parado, sombrio. O vento trazido pela neblina que esquentava o asfalto e o quente que entrava quebrava o clima estabelecido no momento passado. Tudo voltava ao antes e as línguas maldosas a torcerem sussurros e bochichos pelas indagações que nasciam na tentativa de descobrir o que se passara com aquela naquele momento.

Era uma mulher quarentona, loba, dedicada ao trabalho e desligada da vida. Hálito seco e cuspe escorregadio no canto da boca enquanto falava. Vestia-se sempre de roupas escuras e sem modelagem, estilo moda ultrapassada. Prendia o cabelo pesado com um lenço roto pelo tempo de uso e nunca tinha tempo de maquiar-se deixando a mercê dos óculos redondos e dourados o ornamento facial de contraste com suas bochechas arredondadas e dentes amarelados pela nicotina. Ombros contraídos e largos, empinados para frente a esconder o volume do busto. De pouca estatura e passos pesados.

Chegava ao trabalho na hora de sempre, saia depois acumulada de trabalho para fazer em casa. Parecia usar relógio nos pés porque nunca perdia a hora e estava sempre a se policiar de qualquer deslize. Ouvia muito bem, mas nunca se ouvia, nunca estava para bailar ao som de seus desejos, instintos ou gratidão pessoal.

"Se o problema for fogo", era o que ressoava em seu pensamento, fogo. O fogo abrasador, devorador, avassalador despertou em si a si mesma. Via em sua frente o sorriso e o branco dos dentes contrapostos ao vermelho dos lábios. O som emitido ao mesmo tempo e compasso do piscar do olho e da respiração e enquanto fumava pela fumaça e no meio do trago o corpo que se ia a jogo de cintura e rebolado; o cabelo solto ao vento e a calça jeans apertada. O momento, o acaso. As situações de existência que não se explicam. Estava escrito e tudo se fez conforme o acerto ou na hora inesperada estavam no mesmo local sem qualquer propósito ou acordo?

Precisou ir ao banheiro e lavar o rosto. Refletiu sua imagem no espelho da pia. Encontrou os olhos em seus olhos e deixou que se abrisse a janela da alma. A água criava formas e formatos estranhos e quantos rostos podia ver naquele momento. Era feia, bochechuda e de lábios desproporcionais as linhas do nariz. Uma cicatriz debaixo do maxilar esquerdo e uma enxurrada de lembranças descabíveis para o momento e um mister de sangue e lágrimas e imagens distorcidas e um grito a fez sair do banheiro. Bateu a porta e percebeu que não queria mais estar ali.

Sentou-se na cadeiras e passou a abrir as gavetas compulsivamente a procurar algo que não sabia. Desabotoou as sandálias e arrotou alto depois de tomar café frio. Não fez cerimônia nem se sentiu constrangida diante dos olhares de reprovação. Arrumou papéis em várias pastas, rabiscou outros e passou batom. A vontade de fumar e a reconstituição de toda a cena. Do momento que havia pegado o cigarro, atravessara toda a sala, descia pelo corredor, a escada e chegara a calçada. Vivenciou tudo mais uma vez e uma pontada de queima e dor de úlcera a fez gemer mais que o normal. Olhou para o horizonte e ressonou por instantes.

Depois de tantas vezes voltando o vídeo na memória, sem se cansar e acendendo ali mesmo o cigarro, debaixo dos protestos de todos, reconstruiu a imagem tantas vezes que detalhes antes não vistos tornaram-se mais intensos. Percebeu que o mancebo era fascinante, sedutor. Tinha um rebolado no traseiro que de pensar ficou afogueada, rubra. Isso, um bumbum torneado que se estendia até as partes mais de baixo, no formato das pernas musculosas. Lembrou-se que no movimento de acender o cigarro, a camisa subiu e deixou à mostra a barriga malhada e sua visão não deixou de perceber o volume frontal das partes tidas como proibidas, detalhando o zíper quase aberto. Percebeu a cueca branca de punho vermelho e ficou a imaginar a delícia de tocá-la, de ver aquele corpo mais exposto, ao seu lado, como algo semelhante a objeto de cobiça, de desejo;

Não conseguiu mais trabalhar, ficou abalada ao mesmo tempo em que sentia em si um êxtase, algo que a tanto não sentia. Fora arrebata de forma que não sabia explicar. Existia? Ainda não podia dizer, mas o ardor do sangue visitante, inesperado havia jorrado e naquela tarde menstruou prazerosamente com nunca. Viu-se rubra de alma e naquele ato, ela se expulsava de si. Precisava daquela chance que batia a sua porta. Não podia mais correr e novamente esconder-se em becos estreitos ou meter-se debaixo da cama.

O sangue jorrado de dentro de si tinha gosto de maçã. Novamente o símbolo daquilo que é proibido vinha à tona. Suspensa glorificava-se. Naquele momento ela era e passava a ser mais ainda. Vivificava-se a Eva em si. Sorria entre dentre e sentiu-se cansada.

Resolveu sair mais cedo para estranheza de todos e não carregar nada nas mãos. O trabalho que se reservasse àquele canto e ali calado permanecesse até segunda ordem. Trancou as gavetas, arrumou os papeis e pastas, pegou a bolsa e saiu, saiu sem dizer nada, sem ouvir os apelos, sem coisa nenhuma. Saiu sem olhar para trás, sem dizer uma só palavra e a bolsa à tira colo dependurada.

Caminhou pelas calçadas empestadas de camelos. Lágrimas nos olhos. Olhou vitrines e refletida nas portas de vidro das lojas sentiu-se desconforme. Viu que a cor de sua roupa não combinava com aquele fim de tarde; que seu cabelo não correspondia ao que estava sentindo, e que naquele momento nada parecia ser ela mesma.

Viu-se refletida na introspecção e resolveu mudar. Começar por onde? Quis desabrochar a Afrodite adormecida dentro de si. Pensou na madrasta da Bela Adormecida e perguntou a si, como oráculo, quem poderia ser mais esplêndida? Encheu-se de coragem, entrou num salão e preencheu os olhos de cobiça e aspiração. Abriu-se a caixinha de Pandora e agora era a hora de um novo reinado, um novo tempo e templo para o abrigo sacro-humano da fêmea que acordara.

Cortou o cabelo. Mudou a cor. Pintou os lábios e esqueceu os óculos de propósito na lixeira do espaço onde havia renascido. Conhece-te a ti mesmo? Não fazia perguntas difíceis, apenas vivia e dentro da vivência a eterna busca do desconhecido, do humano. Olhou-se mais uma vez e o que via era o que estava além da aparência e uma Afrodite gritante urgia feroz.

Foi as lojas, comprou roupas novas, combinações novas, sapatos, enfim, era, agora, aos seus olhos um novo ser nascido ao cair da tarde e nascer da noite. Estava radiante e se percebia atravessada a nada o lagoa da vida nova. Mas não percebera que não sabia nadar.

Era outra e vinha caminhando a passos lentos. Reconheceu o ônibus da manhã. Estava no mesmo lugar e sentiu vontade de fumar. Comprou cigarros na cigarreira ao lado. Novamente esquecera o isqueiro. Não tinha mais onde procurar. Viu de costa um ser semelhante ao da manhã de sol. Havia nascido uma lua linda no céu. Aproximou-se, tocou-lhe no ombro e perguntou por fogo. O corpo vira para si, os olhos se encontram como o sol e a lua em eclipse. A mão vai ao bolso a procuro do fogo que é disparado de um outro ponto, atravessa a rua e se aloja no coração daquele corpo escultural que não se agüenta em pé. A carne dos membros inferiores rugia em tremedeiras no compasso do coração que explodia involuntariamente, enquanto passava pela retina imagens latentes, de olhos que se encontram e se sentem unidos de vidas eternas. Uma chuva hemorrágica a molhar o peito daquele que se descobrira amante.

Os corpos se encontram colados, unidos pela dor ou prazer dos toques. O corpo dele que tropeça em queda nos braços dela e uma imagem cênica, a recriação do Eros e da Psique, ali, ao cair da noite, no clarão da lua. Eles, os dois, provando do fruto proibido. Pelo fogo, abrasados na dor do encontro dos olhos que se fecham e selam amor para todo o sempre.