UM GOSTO TATUADO NA BOCA

Quando vejo minha flor preferida, não escondo meu encanto e fascinação, me trás tantas lembranças da infância... não cansava de olhar seus ramos trepadeiras nas cercas que separavam minha casa, da horta e do rio. Olhava suas cobrinhas roxo - batata com listinhas brancas e ao redor, pétalas macias, vermelhas recheadas com branco talco. O perfume , ai meu Deus! De longe sentia, o néctar então? Nem se fala! Chegava sempre antes para ver o tal único inseto que a polinizava, sei que o docinho ficava ali , nas bolinhas dos sinos expostos, sem nenhuma proteção. Ficava olhando aquela flor aberta e pensava, olhando para o botão: - como cabe tantas formas dentro desse botão? Por que as outras são formadas de pétalas e miolinho e esta tem tanta coisa? Não me importava nem pensava que tudo aquilo resultava num fruto deliciosamente ácido, liso e amarelo. Preferia a flor. A amava tanto que tinha pena de deixá-la ali, cortava seu galhinho com os dentes cuidadosamente e a carregava comigo, num passeio curto e lento. Caminhava sobre as folhas secas das árvores, de manga espada e peito de moça, do quintal que dava no rio, no fundo do quintal do papai. De cócoras, na margem do rio, sobre uma pedra grande, segurava firme o cabinho da flor e a mergulhava nas águas, ainda limpas e correntes, das margens do rio. Quando a água beijava a flor, as pétalas ficavam pratas, e de uma a uma eram amputadas e devoradas pela minha boca, sem nenhuma culpa. Ficava ali, já sentada na pedra, totalmente alheia. Aquele momento era um ritual prioritário, até ouvir a voz com sotaque italiano de meu pai - vai pra casa menina, deixa o fruto nascer, você comeu a flor da paixão de Cristo... Só hoje entendo o que ele queria dizer, considerada flor da paixão devido a sua forma: coroa de espinhos, cinco chagas, três pregos com que Jesus foi crucificado. De volta para casa, olhava e tocava as cobrinhas brancas e roxas que sobravam da flor, poupadas por medo de comê-las. Quando dava a noite, sonhava com o pé de maracujá, crescendo na cerca, e ao amanhecer, entristecia quando via a flor ainda dormindo, no casulo verde. Hoje , me satisfaço com o gosto das pétalas da flor de maracujá, tatuadas na minha boca.

Luz Miranda
Enviado por Luz Miranda em 17/10/2010
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