Cada um, Quase todos

Meu pai era homem e como tal aprendeu desde criança a lidar com a vida, desfrutou de pouco pão e muito mandacaru; viveu de chupança e quando o calor lhe apertava encostava-se à sombra de um cacto para lembrar-se das coisas que não vivera, inventava-se.

Minha mãe é amarga, e de nossa família tem sido as rédeas desde a queda de nosso guia; logo quando muito nova trabalhou a própria terra, plantou o cortiço e fez nascer vida na terra seca, enraizou os seus cascos amarelados de árido solo e criou-nos como fossemos o próprio corpo já cansado e fraco.

Eu, quando muito, cobri-me das secas folhas da carnaúba; arrastei-me por curtos anos que se passaram longos diante das minhas vistas queimadas de sol; delirei meus anseios de gente e brinquei sobre o trabalho com meus manos, parcos de carne e fartos de vontade.

Meus manos, não sei ao certo quantos, nem conto a história de todos, viveram e morreram passando por mim, e eu ficando; dizem que é destino, a seleção natural que nos mata e escolhe. Porém não tive a sorte. Mantive-me vivo por um fio de vida que se prendeu ao sofrimento de minha querida mãe; ela já nem fala, desde que se foi nosso pai ela esteve firme e muda, ainda que em minha presença, ainda que eu tenha herdado a responsabilidade, ela mantém em seu pulso rachado o cipó das telhas do barraco de pau a pique; apesar de muda transpõe em sua face verdades que se tornam leis para mim. Minha mãe foi o espelho diante do qual eu me vestia.

Por agora que meus manos vão se indo, ela vê os corpos caindo e seu quintal vai se

tornando em um grande mausoléu seco de suas crias, ela se acanha e se torce gemendo ou grunhindo algumas palavras e não responde à maior de minhas tentativas.

Nossa mãe, agora, já não parece mais tão via, nem tão forte, mantém-se firme apenas pelo meu respeito e de meus manos, mas a gente já estranha a sua afasteza. Mendicifaleticamente ela se deita ou devotamente se ajoelha e reza; oferece seus calos e seus cortes na pele como prova de sua crença, cegamente adormece na esperança de acordar em nova terra; renova-se apenas quando vem a chuva e me ajuda, com seus cerrados dedos, a tratar de umas sementes enquanto beija a sagrada e, então, úmida terra. Alimenta o resto de suas crias por uns dias sem fazer questão de tornar-se forte com elas e muda deita-se à espera da seca novamente.

Não, nenhuma cor alguma lhe parece, nem pálida nem anêmica nem parda, apenas triste e de uma tristeza endêmica. Translúcida ela se despede no horizonte da pequena janela avistando o chupim e descobre nas nuvens que no céu não habitam um tempo quente que a leva para a outra terra.

Eu curo a lavoura e mais uma vez alimento meus manos com raízes, curto um caldo com água salobra e fervo na lata o ferro que salvará meus companheiros de sangue.

Minha mãe era forte, e como tal aprendeu desde criança a lidar com a vida. Desfrutou de pouco pão e muito mandacaru. Viveu e acostumou-se logo a conviver com pouco, com menos que o suficiente; agradeceu e conseguiu até rir do sofrimento.

Minha mãe foi muito mais que homem, para mim e meus manos, foi quase gente, foi quase um Deus. Hoje somos, cada um, quase todos um de nós.

Will Aziz