TEXTO INACABADO

Qualquer coisa que seja vida ou que se assemelhe a ela. Eu estive pensando. Somos algo indescritível em decomposição. Aspiramos a ser qualquer coisa que retire de nós um fluido vital inestimável. Eu e as pessoas que compartilham de meu mundo (embora de maneira pessoal e diversa, como deve ser), estamos impregnados de não sei que atmosfera de morte, onde tudo cheira a morte. Sorrisos de além-túmulo ou coisa parecida. Eu disse que aspiramos a ser. Tudo bem. Mas aspiramos como? Um homem está só na rua. Só no mundo. Só nele mesmo. Este homem sou eu ou qualquer outro, pois fazemos parte dessa irmandade onde a solidão é algo irremediável. Ninguém me entende. Eu não entendo ninguém. Para que conversar a respeito? Eu disse que aspiramos.

Aspiramos, pois sim, mas não sabemos canalizar esta aspiração a níveis superiores de realização, se é que existem. Tempo de dissolução. Dissolução de homens, coisas e valores. Vivemos uma crise terrível. Crise na medida em que os valores são criticados na pessoa do outro. Sejam quais forem estes valores, eles serão sempre ridículos se não forem compactuados por uma outra pessoa, para que assim se atinja uma cumplicidade que reflita apenas a média da capacidade de entendimento entre ambas. Não existem valores, parâmetros (vamos dizer assim, ecumênicos). Eu, por exemplo, gosto de um determinado tipo de rock, de um determinado tipo de música. Conheço pessoas que abominam a própria música (ou uma manifestação dela) alicerçados em seus próprios valores, como os meus, também arbitrários se não estivermos enclausurados numa cela comum que nos faça um pouco irmanados na desgraça. Não estou justificando nada perante a ninguém. E nem preciso. Já disse que somos solitários e únicos em nossas celas e latrinas particulares. Não justifico. Esclareço a mim mesmo sob o prisma da revolta. Isso é um desabafo. Batido às pressas. Vinte teclas por segundo. Sem pensar. É a voz que sai de dentro do nada

Não devíamos precisar de ninguém nem de nada. Mas não é assim e ficamos falando com os outros na esperança cega de aprovação e tolerância para com os nossos medos e certezas, tão incertas e frágeis por si mesmas. Não existem certezas, verdades, mas apenas e tão-somente tédio. Sem o tédio não precisaríamos de ninguém. Somos fracos e destituídos de autonomia. Somos condicionados até o rabo.

Houve um tempo em que se acreditava no amor. Mas o amor era grande demais para caber dentro de nossas reações pré-estabelecidas, para suportar as nuanças das relações humanas. Disseram depois que éramos racionais. Mas cadê a logicidade em nós? Somos desprovidos de sentido intrínseco. Eu sou um herói. Provavelmente você não é. Esta regra não é geral. Mas devia ser. Aplicada a todos os casos em suas variantes psicológicas. Sou um herói e não fui, não sou, não serei condecorado e nem quero. Sou um herói porque sou coerente com minha incoerência. Os outros nem isso.

Vejam bem, estávamos falando do amor. Mas ninguém sabe exatamente o que vem a ser o amor e nem saberá. Se descobrirmos o que seja o amor ninguém mais irá sentir essa coisa sem sentido. Para que o homem precisaria de mulher e vice-versa ou o inverso (se for seu caso)? Para copular? Ora essa, vão copular com o diabo e depois o tragam a mim. Também quero aproveitar de suas carnes incendiadas.

A poesia é o que me mantêm vivo(?). É minha fuga e minha ilusão de vir a ser qualquer coisa que não essa, miserável. É minha vingança perante o resto do mundo e perante mim mesmo. Temos ânsia de sobrepor-nos ao vazio num vazio maior, onde nos perdemos. É o paradoxo levado às raias da loucura. Não quero saber de nada. Leio tudo que me chegam às mãos e me perco. Se não lesse estaria igualmente perdido. Faço versos para compensar a noite, compensar o nada, compensar minha impotência diante de tudo e diante de mim próprio. Compensar a compensação. Compensar a falta do que não tenho e que quando tenho não vejo mais os méritos que antes me impeliam à conquista. A poesia é minha redenção e cansaço absolutos.

Qualquer coisa que seja vida. Mas a vida não existe senão na cabeça de quem a isso chama vida. A vida. A essência da vida. A vida-vida. A vida que não a palavra vida, signo impreciso. A vida também não existe. Ouço dizer: viver a vida, aproveitar a vida. Vão para o inferno. Viver a vida como, se não sabemos o que seja vida? Cada um tem uma concepção particular e errônea do gosto pela vida. Os ditadores adoram matar seus oponentes. Certas pessoas se realizam com uma roupa nova. A verdadeira integração que procuro não existe. Alguma coisa que unificasse o ser humano em si mesmo e em relação aos outros. Onde não houvesse perda de identidade, mas a identidade do outro estaria para sempre impregnada no primeiro, formando um ciclo.

Falo de unidade. Unidade é a única coisa que poderia dar sentido a tudo que descrevi e tudo o mais que não preciso dizer. Imagine. Todas as situações. Todas as pessoas. Todo o concreto. Todo o abstrato. Todas as indagações. Pois bem, nada disso tem sentido, significado ou coisa que o valha. Só com unidade poderíamos experimentar um sopro de vida ou outra coisa que a isso se assemelhasse. Mas essa unidade também não existe. Virão me dizer que sim. Responderei que as pretensas unidades que se espalham por aí foram forjadas exatamente para encobrir a falta mesma da unidade necessária. Foram delineadas pelo homem para que ele pudesse ter um vislumbre de interpretação das coisas, para que não se sentisse tão mesquinho e precário. O conhecimento humano nada mais é do que uma catalogação do desconhecido, tornando-o mais próximo ao mesmo tempo em que ele já não está mais ali. Os homens serão anulados pelo seu próprio desconhecimento. E como não há meios para se conhecer, estamos todos irremediavelmente perdidos. Adeus.

(publicado no Jornal Arte Risco nº 03, Juiz de Fora, MG, em Ago/Set/Out/1987).

Milton Rezende
Enviado por Milton Rezende em 07/01/2011
Código do texto: T2714514
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