015 - O DIÁRIO DE UM CEGO...

Vagaroso no andar, jovem ainda, mas apoiado em um cajado cuja extremidade inferior era um tanto retorcida, das vezes nele apoiava seu corpo magricelo, das vezes com ele sondava o caminho, de onde vinha ninguém sabia, mas todos sabiam que quase todos os dias ele vinha sentar em um mesmo banco à sombra de uns coqueiros na pracinha em frente ao hospital.

Trazia sempre colado ao seu corpo uma mochila de tamanho avantajado e dentro dela se supõe que estavam todos os seus pertences.

Seus óculos negros se misturavam aos seus cabelos negros e lisos e despenteados, quando sentado no banco sempre com a mão direita apoiada no cajado, ficava inerte por um bom tempo como se para o chão estivesse olhando.

E ela passava, e ele sabia que ela passava, quando a distância abafava o toc, toc, toc do salto alto das sandálias dela, suas mãos escorregavam para dentro da sua mochila e de lá tirava um grosso e sujo caderno, um lápis e em uma página previamente marcada, escorregava os dedos sobre o papel e começava a escrever...

Era o seu diário.

“Entre todos os barulhos que chegam aos meus ouvidos, aquele toc, toc, é incomparavelmente diferente, tem ritmo, tem harmonia, me ponho a pensar como será os pés que na certa estão calçados em belas sandálias, e produzem aquele som tão encantador, fico imaginando como será o resto do corpo, pois aquele ao andar produz sons insinuantes tal qual o remolejo da maré acariciando as areias das praias.

E os olhos que cor seria?

A boca?

Os cabelos?

Das vezes o perfume dela chega primeiro, das vezes o toc, toc, mas isto não importa, o que importa é que ela esta passando.” “Ela já passou tantas vezes, e tantas vezes meu coração tremulou, meu corpo transpirou friamente, quantas vezes tive vontade de abraçá-la, quantas vezes fui embora jurando que não mais voltaria a este maldito banco, mas no outro dia, esquecido do juramento calmamente a espero passar e eu sei que ela sabe que estou ali para vê-la passar, ou melhor, para senti-la passar.

” E o diário suportava calmamente o desaguar de tantos sentimentos, de tantas lamentações, de tantos sonhos loucos... A escrita era um tanto bagunçada, linha sobrepunha à linha, algumas folhas tinham poucas frases, outras pelo contrário eram uns amontoados de frases, mas isto não importa, o que importa é o que está para acontecer...

Nesse dia o perfume e o toc, toc, chegaram juntos, fazia pouco tempo que ela tinha passado, agora estava voltando...

Nunca tinham voltado assim tão inesperadamente, tão cedo! O perfume e o toc, toc do seu caminhar foram se aproximando...

Aproximando...

O rapaz exasperava, de repente o som emudeceu o perfume acentuou e surpreendentemente ela se sentou no mesmo banco ao lado dele... Assim que ela se retirou, nervosamente puxou seu diário e ainda trêmulo tentava anotar todos os seus devaneios.

“Sem nenhuma cerimônia, sentada ao meu lado ela foi logo perguntando qual era o meu nome, o que ocasionara a minha cegueira, quis saber também a minha idade, gaguejando fui respondendo sem nada esconder, delicadamente ela retirou os meus óculos, imagino que ela o limpou e sem nada dizer o recolocou no meu rosto...

Devo estar delirando, sonhando...

Ouvi sons que alguma coisa estava sendo desembrulhada, barulho de papel alumínio sendo desdobrado, docemente ela falou...

- Hoje teve uma festa de aniversário ali no hospital, trouxe esses salgadinhos pra você, e colocou em minhas mãos pasteizinhos, quibes, coisas tão saborosas que de há muito não comia, por fim falou que tinha um pedaço do bolo e alguns brigadeiros e eu adoro brigadeiro, fui logo comendo um quando ela acrescentou...

- Durante a festinha me lembrei de você, tanta fartura na mesa, sei que você passa por necessidades, tive pena de você e vim te trazer uns salgadinhos e uns docinhos...

- Ela disse...

- Tive pena de você!!

O brigadeiro que estava na minha boca tomou um gosto amargo de fel, transformou em uma bolota de espinhos, não conseguia engoli-lo, comecei a tossir, mil vezes me amaldiçoei, mil vezes me arrependi por ter tantos sonhos malucos, naquele momento tudo o que tinha nos sonhos em nada se transformou, ela teve pena de mim!!

E eu tive ódio de mim por pensar que seria amado e não apiedado.

"Nunca mais voltei àquele banco, ainda sinto tanta saudade dele que é verdadeiro que de lá eu nunca tenha afastado".

Fui me arrastando por tantos caminhos e por tantas cidades diferentes, ainda hoje punge nas minhas lembranças aquele barulho do salto alto das sandálias dela, e a brisa sempre me traz o seu perfume. “Houve uma vez em que estava hospedado em um desses abrigos próprios para pessoas desamparadas, me disseram que uma moça de olhos verdes, cabelos alourados e encaracolados procurava por uma pessoa que pela descrição todos juravam que era a mim que ela procurava, mas relutantemente disse que ninguém iria me procurar, e fui sentar bem longe do olhar daquela gente, não queria que vissem as lágrimas que na certa iriam rolar pelo meu rosto, nem gostaria que vissem a minha dor, nem a imensa saudade que ainda hoje sinto dela.” (será que esta história de amor tem chances de ter um final feliz?)

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 27/02/2011
Reeditado em 15/07/2014
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