Avenida da Desolação

Eu ataco seu modo de pensar, de vestir, de orar, de se relacionar, de se manter, de respirar, de se ajoelhar, de perguntar, de andar, de se masturbar, de fumar, de gozar, de sorrir, de aniquilar e seu modo de parar do lado de velhas senhoras e esperar um sorriso como autorização para ajuda-la a atravessar a rua.

Porque eu vinha na rua com apenas 4 reais no bolso e precisa de algo para beber. E você estava num shopping center escolhendo quinquilharias para colocar no pescoço de sua mulher. E lá fora a barra tava pesada, a viatura passou duas vezes. "Desencana eu pensei", aquela vez que eu tinha viajado de ônibus pra fora do estado eles também estiveram. Eles são como cães rondando uma carne fresca e ótima para ser abocanhada. Mas essa carne tá envenenada. O sol enfraquecia e o vento gelado do sul começava a soprar, seis e meia quase. Nada dos carros pararem de buzinar. Nada das pessoas se ligarem que estão cansadas de caminhar por aí. Nada daquele maldito sinal abrir! Atravessei a rua de asfalto de todas as encarnações possíveis e não possíveis e entrei no mercado com condicionamento de ar. É agradável passar alguns minutos dos dias quentes ali dentro, mas as pessoas são insuportáveis. Só que eles tem uma água gelada que dá inveja em muitos consultórios médicos. Aí caminhei no meio das prateleiras e olhei todos vocês se acumulando nas filas, com suas compras empacotadas e prontas para entrarem no porta-malas do carro. Plact-ploct-pluft. Derruba a lata no chão e junta. Lá vem o encarregado de carregar. Carregar e descarregar. Pensamentos automáticos. O freezer só oferece duas marcas de cerveja. Tem uma uruguaia pelo preço da brasileira. A argentina é mais cara, mas é só a marca, o gosto é igual - se tiver gelada. Pego duas uruguais e lá se vão meus quatro reais. Dois pila cada uma, 330 ml's em cada. Gostaria de morar na Alemanha, ou ao menos passar por lá, ou ao menos pagar o preço da cerveja de lá. E a mulher que me atendeu no caixa era uma estúpida vinda do interior, ou de alguma cidade em que o povo é ignorante demais para olhar na cara de uma pessoa enquanto se fala com ela. Ela ficava com um ar de que valia mais do que as minhas duas cervejas. Duas cervejas as seis e meia da tarde valem mais do que o sorriso da mãe dela junta e de toda a cidadezinha de onde ela veio. E ela colocou as minhas miseras garrafinhas verdes dentro de uma única sacola branca. Eu sai do supermercado tomando uma e na lixeira tinha um cigarro apagado. Roubei. Gosto de falar que roubei mesmo que não tenha sido um roubo. Mas ele estava ali e não era meu. Agora era. Coloquei atrás da orelha até que aparecesse alguém fumando um. Aí eu pedia o fogo. Aí eu tomava minhas duas cervejas e fumava um cigarro. Cigarrão. Era branco e longo. Mais fino que o comum, mas era longo. Deixei o cigarrão na orelha. Disparei tomando a uruguaia amarga e filosofei por alguns segundos enquanto as bolhas se faziam em minha boca. Aí ouvi um estouro do meu lado. Inacreditável. Mundo cão, e aquela velha do lado sacando toda a minha jogada, me olhando com cara de desprezo. E o trânsito caótico acelerado na avenida, e as pessoas com pressa fingindo que não era o fim do mundo. Passavam do meu lado e só olhavam para baixo e num gesto singelo sorriam com o canto da boca como se eu achasse aquilo engraçado. Eu não vi mas aquela atendente sem nenhum carisma também era uma sacana filha da puta e ela sacou minha indignação com ela e me deu uma sacola furada. Ou rasgada. Ou aquela bosta só tem sacolas que não aguentam 330 ml's. Fiquei ali olhando aquela espuma branca e gelada escorrendo no meio dos cacos verdes da garrafa. Que desolação! Que desolação! Dois reais perdidos, 330 ml's de cerveja gelada transformada em espuma branca no chão sujo em meio aos cacos de vidro. E ninguém nessa cidade vem me ajudar? E os carros seguem passando por mim como se nada tivesse acontecido? Os aviões lá em cima não notaram o tamanho da merda que aquela atendente idiota fez?! E eu sai andando pesado na avenida triste da desolação. Eu me senti traído. Eu me senti fraco, oprimido. Eu não respeito mais nenhum de vocês, eu não devo nenhum respeito a vocês. Eu ataco vocês.

Eu estou desolado porque perdi meus dois reais e os 330 ml's da cerveja. Cerveja....

Reny Moriarty
Enviado por Reny Moriarty em 31/03/2011
Código do texto: T2881916
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