O enredo da paixão que não foi - a história de uma Inquisição.

Ela caminhava levemente por aquele gramado. Estava branda, amena, feliz. Em suas mãos trazia seu presente - que não sabia ser de vidro! - e o afagava, brinquedo novo em mão de criança tola.

À sua frente, ele ia seguindo, andava quase pulando (na verdade, sentia-se flutuar). Em seu rosto, um riso bobo, um olhar febril, de sua boca, apenas palavras triviais, fúteis, até. Do rosto dela, nenhuma contração, nenhuma marca ruim, somente leveza.

Ele ria e abraçava como uma criança carente, mas amava como homem. Ela o via, compreendia, aceitava. Assim foram horas de um baile gentil mas sensual, bucólico mas febril.

Ele a achava linda, instigante, perigosa. De uma beleza agressiva, ferina, quase cortante. Ele se feria com o humor pontiagudo dela, mas preteria a mágoa frente a um beijo. Ela o achava sutil, não obstante castrador, indevassável, inatingível. Às vezes ela queria feri-lo, mas só conseguia desejá-lo.

Ela era pagã. Ele, cristão. Ela tinha em seu colo a lubricidade de uma bruxa, incitava desejos perniciosos, seduzia. Ele a censurava em tudo, com seus olhares evangelizadores. Ela o adorava, então.

Ela divertia-se com essa dança! Na rua, os espíritos a cumprimentavam e ela respondia. Ele pensava que era loucura. Ele media, contava, anotava o tempo, marcava os dias e queria lembrar as datas. Ela apenas dizia: "Carpe diem, muchacho!"

Ele traçava planos, comparações e estatísticas, enquanto ela apenas traçava um caminho até o deleite de ambos. Ele se calava e aceitava: não podia resistir. Ela falava baixo, ao pé do ouvido, descendo pelo pescoço e garganta, enquanto suas mãos iniciavam a prospecção de novas texturas. Ele queria que ela se explicasse. Ela só queria trazer o corpo dele para junto do seu.

E assim foram os dias em que a vontade lhes paralizava o trabalho, e a melancolia o abandonou, debruçada sobre os risos bobos que iam e vinham entre eles.

Ela era de vanguarda. Ele, proscrito - de uma faceta romântica que morreu de tuberculose. Ela era dadaísta, sorteava palavras para declarar-se. "Loucura", ela ria-se. "Intenso", ele dizia.

Ela era pecadora, e como tal, pecou ao apaixonar-se (ainda que só por um instante!), e ele, como Inquisidor de sua pequena, a pegou em flagrante. Preparara armadilhas para ela: a voz em sussurro, sorrisos, declarações em silêncio, seus gemidos, respiração acelerada, festival de sentidos... Eram armas para aprisioná-la e condenar seu empírico amor à morte por sufocamento.

E ela sufocou seu amor. Estava vestida com uma seda leve, caída aos ombros, quase despida. Ele estava protegido por sua armadura de ferro, brasão enorme estampado no peito. Ela não pôde contra-argumentar. Não queria. Para quê contestar tal irrefutável frieza?

Ela poderia ficar ("Carpe diem...?"). Hesitou. Pensou nos beijos que ainda não dera, nas danças que ainda não criara entre os lábios de ambos, pensou nos abraços que não teria tempo de dar, em nunca mais passear com seus dedos por entre os cabelos dele. Pensou que era melhor ir embora. Fez o anúncio, deu o último beijo (agora sem sedução). Abriu a porta de casa como se deixasse para trás um fardo, e não um amor.

Não carrega lembranças, nenhuma amargura. Sem cartas, sem fotos, sem sentido. Nenhum souvenir do seu contentamento.

Ele hoje picha o muro em frente à casa dela com frases tolas de amor a outra: os mesmos pronomes de tratamento, as mesmas sensações, o mesmo roubo, o mesmo pesar. A mesma fogueira em que ele quis que ela ardesse - de amor?

E ela sente-se aliviada. Sentiu falta, também, mas hoje sente apenas uma suave e doce tristeza ao lembrar de algo lindo, que, sendo forte para ser real, simplesmente não o foi.

Fernanda Gadêlha
Enviado por Fernanda Gadêlha em 14/11/2006
Reeditado em 16/11/2008
Código do texto: T291032
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