Frágil

(Ou A receita para transformar um Homem em uma Besta)

Eu não tenho garras. Também não tenho presas ou mesmo o faro aguçado. Não sou forte nem veloz. Não sei atacar e não tenho meios para me defender. Não sei caçar, não quero. Também não tenho nenhum predador. O homem biológico é fraco e desprotegido, presa de um mundo caçador por instinto.

Eu morro de tiro, morro de medo, morro do cansaço que o cotidiano me impele. Morro das coisas banais que me frustram e morro da saudade vã das alegria que deixei escapar por entre meus dedos. Morro de amor. Faço parte da única espécie capaz de assassinar coisas abstratas, sufocar sentimentos e matar o tempo.

Eu mato o tempo nesse mundo léxico. Gasto-me inteira em palavras, procuro definições, explicações para o que a minha Razão não entende. Estendo a mão para sentir o que eu não posso tocar. Em vão eu perambulo pela casa, pelas ruas, pela vida. Eu sou frágil, e todos à minha volta também o são.

Sou frágil porque não sei o que sou. Sinto-me etérea, forte, capaz, quase perfeita. Humana. Mas como todo o resto eu sou feita de uma carne triste, perecível, e o Tempo me arranha, me desgasta. À minha volta, as árvores continuam crescendo orgulhosamente. A Natureza segue seus planos, que não precisam ser explicados. Um dia minha mãe me explicou de onde eu vim. Planejou para onde eu iria. Consertou-me os equívocos. Para quê?

Um dia me falaram de deus e de amor, tradição, família e fidelidade. Nunca se lembraram que eu sou um bicho, uma fera. Domesticaram-me como em um circo, sem piedade e sem consciência. Fui adestrada a sobreviver nesse Mundo-Trator, fui castrada, tolhida, educada. Fui castigada quando me revoltei.

Eu não tenho garras ou presas, mas tenho pensamentos cortantes como navalhas. Tenho palavras pungentes, ferinas. Com minha eloqüência e verborragia eu firo a alegria alheia, destruo as mentiras que criam para se defenderem de mim. Com minha ira, eu ataco meus alvos com precisão cirúrgica - felina, melhor dizendo - e minha fúria me torna uma besta implacável.

Não posso ferir o rosto daquele que amo. Não posso devorá-lo. Preciso explicar-me, entretê-lo, conservar-nos. Só tenho permissão para agredi-lo com meu desprezo, com meu amor a outro, com meu pouco-caso e minha felicidade. Melhor seria se eu fosse mesmo um bicho, como esses pequenos que passeiam pela minha varanda, fêmeas na noite que conhecem a Vida e as suas dores melhor do que eu. Porque eu sou humana, pequena, agressiva e frágil.

Melhor mesmo se eu fosse um bicho. Melhor ainda se parasse de fingir que eu não o sou.

Fernanda Gadêlha
Enviado por Fernanda Gadêlha em 02/12/2006
Reeditado em 16/11/2008
Código do texto: T307980
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