Esse bule é igualzinho a um que minha avó tinha, foi o Luiz Yamanu, amigo e colega recantista que me enviou a foto por e-mail.

    Um pouquinho de mim para comemorar os 80 textos.

     Conservo na pele algumas cicatrizes dos tombos e arranhões que machucaram aquela menina de roça que fui e acho que ainda sou, na alma, pelo menos... Era tarefa minha, recolher gravetos para acender o fogão e esquentar no grande caldeirão, a água para o banho de bacia dos irmãos menores. Eu não gostava de catar lenha, costumava espinhar o pé, me arranhava toda andando no mato. 
     
     Várias vezes subi nas árvores para ficar mais perto de Deus e pedir uma vida melhor. Hoje vejo que as marcas na pele são insignificantes quando me lembro daquele tempo...

     O fogão à lenha que ficava na cozinha de meus avós era de cimento vermelho, o que ficava na varandinha era barreado com tabatinga, o bule esmaltado, desenhado nele havia um ramo de flores. O fogo sempre aceso. Acender fogo era uma arte. 
     
     A vassourinha não deixava o fogão sujo de cinzas. Minha avó aproveitava a cinza para fazer barrela que facilitava a limpeza das panelas e a diquada, um caldo marrom extraído das cinzas, era usado para fazer sabão preto de bola, que ficava guardado debaixo do fogão para não melar.

     As escritas das latas de mantimento despertavam minha curiosidade, pedia mamãe que lesse o que estava escrito e ela dizia que as bolachas tinham meu nome, “Bolachas Maria.” 

     As prateleiras eram forradas com toalhinhas bordadas à mão, ainda do enxoval. Os panôs na parede com dizeres bordados, o banco com as latas de querosene que guardavam a carne de porco, o bucho cheio/recheado, latas de biscoito de polvilho, de farinha de milho, de mandioca, de moinho... Tudo muito asseado.

     A banquinha com os dois potes de barro, cobertos com toalhinhas redondas de renda turca ou crochê. Sem esquecer a caneca boca-dentada, destinada a tirar a água do pote sempre friinha. Estrategicamente feita para as crianças não colocá-la na boca e assim babujar a água dos potes.

     As toalhas de banho, os panos de prato, feitos com sacos de sal ou açúcar alvejados e arrematadas com franjas torcidas! Os embornais, com retalhos das calças de brim. Hoje seriam chamados de sacolas ecológicas em patchwork.

     A mesa da cozinha com garrafas de pimenta, farinheiro e moinho para moer o café torrado a cada vez que era coado e era adoçado com as rapaduras que ficavam numa tábua acima do fogão. 

 
     A s gamelas, os balainhos, jacás, canudos para transportar galinha, o tacho de cobre comprado da tropa de ciganos, a cestinha de ovos feita de litro, parecida com lanterna japonesa, as lamparinas que iluminavam as noites e nos faziam amanhecer com o nariz cheio de fuligem. As colheres de ferro encomendadas ao senhor Rodantino, um artesão, salvador da pátria, o faz-tudo, conserta-tudo. Obrigada Seu Rodantino, esteja onde estiver...

     E o alpendre? Se tinha uma caixa de marimbondo ninguém mexia, pois trazia prosperidade, era bom. Inesquecíveis os mistérios do faz-mal. Era costume pregar na porta de entrada uma oração forte como, por exemplo, a da Estrela do Céu. Pregava-se também o calendário, a Folhinha Eclesiástica, que trazia a previsão de tempo, para o ano inteiro, os nomes dos santos dos 365 dias do ano. Foi a folhinha Mariana serviu de inspiração para meus pais, 16 de julho: Nossa Senhora do Carmo - brinde da loja do Edgar. 
     
     Os almanaques de farmácia, meu avô colecionava o Almanaque Fontoura, brinde muito aguardado, pois trazia informações, curiosidades e passatempos. Infelizmente não foram preservados e hoje não tenho o prazer da leitura, de observar as ilustrações.

     Os compridos jiraus branquinhos de blocos de polvilho para isbrugá. Ou melhor dizer, esfarelar e secar ao sol; o feijão para bater, pegar a roupa do corador, levar o doce de manga para a cristaleira. Lavar a casinha de queijo, dar milho às galinhas, procurar o olho de formiga, regar o pé de jasmim, os penicos de flor- de- maio e malva cheirosa. Construíram a casinha e os penicos esmaltados serviram para plantar flores.

     Minha avó Geralda, era adepta dos chás. Sabia fazer chá para curar de um a tudo. Havia uma horta de couve que era cortada por um rego d’água, para facilitar na hora de aguar as hortaliças que cresciam viçosas. Eu e os irmãos sempre ajudávamos no plantio do alho que devia ser plantado sempre na sexta feira da paixão, da alface e do quiabo. Quiabo só podia ser semeado por crianças para o pé não crescer muito.

     Aprendi a rezar o terço ainda menina e acompanhava vovô Joãozinho nas rezas. Sempre em torno do oratório de madeira com os santos devotos da família e ramos bentos, unidos os vizinhos rezavam apertando as contas do rosário com fé, pedindo e agradecendo as bênçãos do céu. Quando se via o clarão seguido daquele ronco de trovão ecoando na escuridão valia-se dos ramos bentos. Santa Bárbara, São Jerônimo, valei-nos!

     Depois íamos para a cozinha contar muitos causos acompanhados de café com quitandas, e muitas risadas. Não se usava a palavra serões, apenas se combinava para cascar mandioca à noite, depois da lida diária, para fazer farinha ou polvilho no outro dia cedinho.

     Sei que hoje em dia é preciso de muito mais que brasas para aquecer o caldeirão onde moram os sonhos, é preciso mais que rapaduras para adoçar uma vida. Mas quem viveu algo parecido sabe que esta lembrança é algo precioso. Nem o tempo vai conseguir esfriar o calor da chama do fogão à lenha da nossa memória.


 
     Muito obrigada a todos pelas 14.000 leituras.
 
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 23/11/2011
Reeditado em 04/09/2012
Código do texto: T3351753
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