Paz eterna

I

Foi constatado, depois de uma série de exames laboratoriais sofisticados e terapias feitas por equipe médica especializada, que o quadro geral, a situação como um todo, é por demais complexa e que, apesar de todos os esforços para contê-la, tudo indica que a grupo de salvamento, responsável por manter os riscos em níveis aceitáveis, está perdendo o controle da situação.

Mesmo com os mais avançados métodos da ciência e com a ajuda da filosofia, da religião e de conhecimentos outros da humanidade, o fluxo elétrico cerebral está enfraquecendo, com a consequente diminuição da atividade consciente.

Os médicos começam a perceber que as altas doses de substâncias felicilógenas, apesar de diminuir o grau de auto-destrutibilidade para níveis menos alarmantes, não estão atuando satisfatoriamente na psique, que apresenta variações incomuns para os padrões de lucidez e controle emocional.

Parece que o subconsciente do paciente está aos poucos tomando controle de todas as atividades fisiológicas e tentando enfraquecê-las. Os médicos estão chamando esse comportamento anômalo de síndrome do suicídio por controle subconsciente. Ninguém sabe ainda o que vai acontecer.

Os pais e amigos pedem para que o doente tome forças, que se erga, pois as coisas podem mudar para melhor e tudo será diferente. No atual estado de seu corpo, entretanto, a dúvida é se o paciente ainda consegue ouvir os apelos por sua reação.

II

Repentinamente, uma enfermeira percebe movimento em seu braço, depois percebe que ele tenta falar algo, com certa dificuldade. Ela, então, se aproxima para ouvi-lo.

"Chame meu pai". Imediatamente trouxeram-no.

"O que foi meu filho? O que você quer? Peça qualquer coisa. Por favor."

O filho, agora com lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto, olha bem para seu pai e diz:

"Eu quero apenas uma coisa meu pai. Posso contar com você?"

"É claro, peça."

Suspirou profundamente, com um brilho inigualável em seus olhos, como quem estivesse maravilhado com algo de pura beleza, uma visão que depois descreveriam como santa, as pupilas tremendo levemente, querendo fechar, o peito se esforçando para conter fôlego suficiente para fazer o pedido.

"Meu pai, se me amas de verdade, conceda-me este pedido, que é o meu único e último." "Apenas diga."

"Por tudo que há de bom entre nós e por tudo que vivenciamos. Mesmo que não tenha sido tudo aquilo que um dia tenhamos sonhado. Foi toda uma vida, com seus altos e baixos. Com nossos erros tão nossos. E depois de tudo só tenho a agradecer. Por ter tido a oportunidade de conviver com pessoas tão fantásticas como vocês. Eu só quero pedir, hoje, depois de tudo, uma única coisa.”

"O que é? Fale."

“Dê-me, meu pai, permissão. Permissão pra dormir como uma criança, sem preocupações nem amanhãs, sem perguntas nem reflexões. A permissão para descansar em paz eterna. E não acordar jamais, e não acordar jamais...”

III

Uma pausa. Mil sensações estranhas. Movimentos imperceptíveis nos tiram do estancamento.

Olhos e orelhas espreitam. Fechar os olhos nos leva ao passado.

Era fim de tarde na cidadezinha pacata em que moravam...