Feito estrada

" O ódio bebo de dentro pra fora.

O medo bebo de fora pra dentro.

De noite não é o olho que chora:

É o estouro da represa do tempo. "

(Julio Almada)

Vou me dar pés que nunca tive e me remontar a origens que não são minhas.

Deixar meu sangue correr pelos limites das fronteiras. Ir-me. Há tantas direções, tanta terra escoando pelos meus dedos. Um mapa geográfico que não compreendo, com minhas águas de dentro, meu mangue, meu pantanal e meu sangue.

Vou por essa areia movediça que minha bússola acusa ser perigosa. Adentro. Enfrento. Luto. Morro. E me reinvento.

Essa dor, meu Deus, essa dor, que me tange, me esgarça. Feita de letras e tão somente delas. Não me sentem, não as sinto. Elas são tantas e não me querem. Me enganam, ludibriam, me matam mil vezes. Levanto. Me reinvento.

Me deixo ser estrada. Usada. Não se ama a estrada, ama-se o destino.

Vou assim. Em preguiça, remendos, sol do meio-dia. Sou trapo. Asfalto irregular. Pequeno ladrão. Assalto, sou tomada de assalto, sobressalto. Sou crime de navalha e fio. Fio de via. Fio de poste. Fio de linha. Fio de teia.

Me escondo depressa. Acendo velas. Protejam-me, Ogum, Yansã, Xangô! Sou estrada de crença.

Sou estrada de seca, de nordeste, de fome, de criança barriguda.

Sou estrada do meu povo a caminho do meu povo. Vislumbro caatingas, secas, áridos de corações. Tenho essa indolência estranha dos que atravessam países e portos. Troco a bandeira. É preciso sobreviver. Hasteio a de viking. Agora vou tomar o que quiser. Roubo, saqueio e cuspo na raça minguada de fome de amor. Não têm fibra. Não são bons de briga.

Continuo pelas cercanias dos donos de nada. Sinto o levante do cheiro de suor, da cachaça, da pouca comida. Não se vive sem comida. Pode-se viver sem amor? Ando pela miséria dos contrastes. Sou estrada esburacada, viro abismo e estou entre o céu e o povo. Estou entre a nuvem e algum deus. E continuo parindo coisas que ninguém entende. Continuo via.

Estrada na solidão de amar que é passagem do trem para o ir-se.