Depois das cinzas da quarta-feira de Carnaval

Tudo era silêncio no pequeno apartamento. Minto. Tudo não. Apenas o eco quase surdo do velho relógio que resistia, atento ao tempo, pregado na parede nua, quase imaculada, podia ser ouvido. Fazia coro com o fragilizado coração.

Sempre gostara do silêncio. Sobretudo daquele que cobria as madrugadas frias do final de inverno. A alma também tinha o seu quinhão de gelo, seus resquícios de mágoa inserida no sangue quente que ainda corria nas veias.

E nesse silêncio a lembrança dele foi desperta, como saída das páginas de um romance.

Não só a lembrança, mas também – estranhamente – o perfume amadeirado e até mesmo o cheiro de cigarro barato.

Ela revirou-se na cama, tentando, em vão, espantar aquela lembrança inoportuna. Afinal, já fazia tanto tempo... Não era justo com ela que esse mesmo tempo que as bocas diziam curar tudo viesse perturbá-la.

Colombina. Assim ela se trajara naquele remoto Carnaval.

Pierrô. Assim ele escondia a face atrás da máscara, como se possível fosse viver uma outra vida, ser nova personagem.

Entre confetes e serpentinas o encontro.

Entre as cinzas da quarta-feira, a despedida.

Diziam ser apenas amor de Carnaval. Duração curta, passagem de um átimo nos corações apaixonados.

A Colombina, encantada, suspirava entre os mesmos confetes e serpentinas.

O Pierrô, embalado pelas antigas marchinhas, rodopiava sobre o calçamento já gasto das antigas calçadas. E sabia o poder que exercia sobre a Colombina. E nesse cordão vinham as melindrosas, não menos fascinadas.

Uma volta nos passos, o encontro dos olhos, a seta certeira de um cupido desastrado que naquele dia percorria a cidade incendiando corações quase implumes.

Do olhar ao beijo, uma eternidade. Mas até a eternidade fazia-se paisagem para o tempo. Tudo, afinal, festa e fantasia.

Combinaram que seriam apenas a Colombina e o Pierrô, sem qualquer outra identidade. Seriam, naqueles dias de Carnaval, apenas personagens de uma história, partes de um contexto fragmentando pelas fantasias. E assim foi.

Mas a Colombina não resistiu. O coração, inflamado, queria mais do objeto amado. Queria desvendar os segredos, olhar atrás da máscara, ouvir o nome, saber a vida.

Tudo em vão. O Pierrô levara a sério a combinação. Não queria nomes, identidades.

Último dia de Carnaval. Os dois, novamente, juntos pelas ruas da cidade, de mãos dadas, trocando beijos e travessuras.

Ao findar-se a festa o Pierrô partiu, na ponta dos pés, enquanto a Colombina sonhava.

E, de tanto sonhar, esqueceu, no coração dele, a própria identidade.

Rita Venâncio
Enviado por Rita Venâncio em 01/09/2013
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