PRIMEIROS PASSOS RUMO ÀS LETRAS

I

Desde muito cedo, por volta dos meus cinco anos de idade, me apaixonei pelas “letras”. Queria desvendar o mistério daqueles símbolos que, um a um, se juntavam, “davam-se as mãos” e formavam o que, segundo a minha mãe, eram as “palavras”: apaixonei-me (também) por elas!

Minha mãe, costureira de profissão, desenhava as letras em seu "caderno de medidas": para cada cliente, um nome diferente (Tereza, Cida, Geni, Lurdinha, "Lola", "Bimba", Olga, Raruco...), uma medida diferente... Eu viajava em cada movimento da sua mão segurando o lápis ou a caneta. Com linhas ou sem linhas no papel, as palavras flutuavam, dançavam, seguiam uma coreografia leve e suave... às vezes um pouco mais rápida, mas, artisticamente, nobre. A letra da minha mãe era, aos meus olhos de criança, arte, na mais sublime expressão da palavra.

Por falta de oportunidade, minha mãe estudara pouco, apenas até a quarta série do antigo curso primário, porém, fora diplomada, com louvor, pela escola da vida e, com essa distinção, me guiou com maestria ao caminho das letras.

Aos cinco anos, fiz o pré-primário e, tamanha era a minha avidez por aprender, que já sabia juntar as sílabas, formar palavras e... ler! Uma cartilha “Caminho Suave” chegou até as minhas mãos: devorei-a! É certo, no entanto, que a minha leitura apresentava alguns tropeços, mas estes não foram empecilhos para que eu desanimasse ou desistisse de aprender, ao contrário, me impulsionaram a seguir aprendendo. Afinal, queria ler como a minha mãe, sem tropeçar, sem gaguejar... como se as palavras fossem borboletas saindo da boca em um voo suave e colorido.

Adorava ouvir as histórias que minha mãe lia para mim. Às vezes, ela as repetia, mas eu não me importava com isso: a cada dia sua voz me remetia a uma nova história, a uma nova viagem... Além disso, não havia muitos livros em casa (o pouco que havia era fruto de doações) e não havia dinheiro suficiente para adquirir novos exemplares: eu percebia isso! Contudo, aprendi, também com a minha mãe, a amar os livros e a respeitá-los: “os livros têm sentimentos, têm alma, têm vida própria e sofrem como nós. Cuide muito bem deles, não os machuque, não os maltrate!”

Lia muito, lia de tudo, qualquer coisa. O percurso feito de ônibus da vila onde morava (Vila Hortolândia) até o centro da cidade (Jundiaí-SP.), por exemplo, repleto de outdoors, placas, pichações, grafites... era, para mim, o paraíso das letras, o grande mistério a ser desvendado – e eu tinha a chave! Lia tudo, avidamente, e queria mais!

Fui contagiada pelo fascínio das letras e, desde então, não consegui parar. Sim, fui contaminada pelo vírus da paixão pela leitura e pela escrita. Cura? Melhor não pensar nessa hipótese...

II

Morávamos em Jundiaí-SP, eu, meu pai e minha mãe, na Vila Hortolândia, em uma época em que as pessoas pareciam não ter tanta pressa: havia tempo suficiente para, pelo menos, cumprimentar umas às outras com um sorriso nos lábios, um aceno, um “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”.

Um casal de vizinhos – “seu” Augusto e “dona” Noemia –, foram grandes incentivadores para o aprimoramento da minha competência leitora. O que eles faziam? Todos os dias, sentávamos na varanda dos fundos da casa deles e o “seu” Augusto, muito terno, entregava-me um jornal. Naquela época, aquele jornal, parecia maior do que eu; pesava em minhas mãos e as letras eram tão miúdas! De repente, todos esses devaneios eram interrompidos pela voz do “seu” Augusto dizendo: “Leia para nós, por favor!”. Às vezes ele escolhia a notícia, o artigo que seria lido, em outras, porém, ele pedia para que eu mesma escolhesse.

Ah! Eu me sentia tão importante com aquele jornal nas mãos! Eu lia! Eu sabia ler! Ficava radiante quando o “seu” Augusto e a “dona” Noemia olhavam para mim admirados e diziam que eu lia melhor a cada dia. No alto dos meus seis, sete anos de idade, eu não tinha a real dimensão da importância do gesto desse casal. Graças a ele procurava aprimorar a leitura e, graças a ele, até hoje, não consigo passar indiferente perto de um jornal: o “seu” Augusto e a “dona” Noemia me mostraram, mesmo que de forma bem simples, o quão importante é ler, buscar a informação, nos inteirarmos do que acontece à nossa volta, na nossa cidade, no nosso país, no mundo, afinal, fazemos parte desse contexto. Este casal era o centro de uma família bastante humilde, sem qualquer ostentação. Viviam de maneira muito simples, sim, mas, fizesse chuva ou sol, o “seu” Augusto voltaria para casa com o jornal do dia.

III

Tia Maria não era, de fato, minha tia, ela era esposa do filho da madrasta do meu pai. Parece confuso dito dessa maneira, mas, é isso. E, voltando ao início, Tia Maria era professora. Sim, professora! E, ao pronunciar esta palavra, naquele tempo, soava como uma reverência. Tia Maria e tio Tuninho moravam no centro da cidade, na Rua XV de Novembro (Jundiaí-SP.), tinham uma bela casa e viviam muito bem com seus dois filhos: Antonio Carlos e Rosângela. Com frequência, íamos visitá-los. Ir para a casa da tia Maria, para mim, representava muito, era motivo de festa, melhor do que ir a um parque de diversões. Ainda com meus sete, oito anos, admirava a tia Maria, queria ser professora também: tia Maria ensinava um monte de alunos, era respeitada por todos, era fina, falava baixo, tinha um timbre de voz bem suave, trejeitos leves... Era muito educada! Normalmente íamos à tarde, por volta das dezesseis horas e, na chegada, uma mesa farta estava pronta, à nossa espera, com café, chá, leite, sucos, vários tipos de pães, tortas, doces e outras guloseimas... Era muito bom! Mas, o que eu gostava mesmo, era de ficar observando a enorme estante de livros da tia Maria.

Parecia uma livraria! Folheava um e outro livro, demorava um pouco mais nas capas de alguns, nas encadernações... Sentia a textura dos papeis nos meus dedos e o cheiro de cada um... Hummm! Perfume francês! Foi numa dessas idas à casa da tia Maria e numa das inúmeras visitas à sua estante que eu ganhei um livro que marcou para sempre a minha vida: “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. Não sei quantas vezes (re)li esse livro, mas o Sítio do Picapau Amarelo marcou a minha infância; Monteiro Lobato me fez sonhar e trago sempre comigo, até hoje, um pouco de pó de pirlimpimpim para não deixar que a vida perca a sua magia.

Silvana Moreli
Enviado por Silvana Moreli em 14/06/2014
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