ESPELHO QUEBRADO

"O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio

(...) - esse alguém percebeu o seu mistério de coisa."

(Clarice Lispector)

Sete anos! Sete anos de Azar!!!

Seria sua pena por quebrar o espelho. De nada adiantaria alegar ter sido acaso, acidente. Todo mundo sabia que o espelho havia sido quebrado por refletir a realidade como não se queria. Uma verdade que não se admitia.

E agora sete anos de azar era o que o esperava. Sentença implacável do destino. Olhou no calendário o que tanto perderia: Feriados, verões, meses, semanas, dias, instantes... Seriam todos agora, com azar, piores do que até então foram.

"Maldito Ditado Popular!", esbravejou ele enquanto se preparava para cumprir a penitência que lhe fora imposta.

Mas nesse momento, como num surto de lucidez, reconheceu sua situação sobre outra ótica, numa instintiva reação de autodefesa que poderia soar até como apelação. Mas era sólida sua argumentação: Sua pena há muito já vinha sendo cumprida. Comprida.

Nunca fora um sujeito de sorte, e sua consciência aguçada já lhe havia imposto muitas privações. Por ter o seu próprio senso-crítico, não se sujeitava a comercial massificação de costumes e/ou valores. Por ser demasiadamente humano, era único, uno, individuo a cumprir sua pena em condição solitária sem acesso a qualquer interlocução.

Diferente. Cumpriu a pena antes mesmo de haver cometido a infração. Não poderia ser condenado duas vezes pela mesma contravenção, delito, crime, superstição.

Há tempos, insatisfeito com a lógica cartesiana da realidade que lhe fora oferecida, havia abolido, ignorado e contestado para si essa realidade.

Pagou o preço crescendo sozinho, longe de tudo e de todos que acham possível, nessa realidade, crescer.

E depois de muito, muito mais que sete anos, ele materializou sua aversão à realidade quebrando o espelho.

Por ousar impossibilitar a totalidade ali no espelho refletida, não seria justo pagar de novo pelo crime que já pagou antes mesmo de haver cometido.

Estilhaçou, confessou que com prazer indescritível, a realidade que se apresentava no espelho. Em tantos fragmentos que, agora sim, se mostrou mais exata a realidade. Desmascarou a coesão impossível da verdade contida em um único plano.

A realidade única foi decomposta e só se tornou plena através de cada fragmento. De cada estilhaço. Em cada pedaço, o espelho continha o Tudo em seu reflexo. Múltiplas lâminas que interrompem o improvável sentido do que nunca teve nexo e ainda revelam, com perigo de ferir, a realidade com toda sua diversidade.

Ele já havia cumprido sua pena, pensava assim. E agora se sentia livre para multiplicar sua verdade estilhaçando a realidade que não lhe bastava.

E mais bonita a realidade dos fragmentos que se moldam em inexatas continuações, que a sólida e rasteira convicção de pensar poder ver tamanhas diversidades sempre sob a mesma ótica plana da passiva e resignada conformação.

O futuro que será resultado da sua decisão lhe mostrará seus desígnios. E se for azar, ele já está acostumado com o que chamam de falta de sorte.

“... Sua voz se misturou com a balbúrdia dos carrascos, dos inocentes, dos condescendentes e dos alienados. Mas seu riso foi multiplicado e refletido pelos cacos do espelho que se espalharam por todo seu mundo...”

“Eu, que senti o medo dos espelhos

não só frente ao cristal impenetrável

onde acaba e começa, inabitável,

um espaço impossível de reflexos,

Mas frente à água especular que imita

o outro azul em seu profundo céu

que risca às vezes o ilusório vôo

da ave inversa ou que um tremor agita...”

(Jorge Luis Borges)

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CARLOS EDYL SANTIAGO FILHO, jornalista, funcionário administrativo da Câmara Municipal de Três Corações, como bom aquariano, vive em reflexão em espelhos ou não.

Contato: carlosedyl@uol.com.br

Mais do autor: PULSAÇÕES TRICORDIANAS: http://tricordiano.zip.net/

Carlos Edyl
Enviado por Carlos Edyl em 21/05/2007
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