SESSÃO ÚNICA

Carlos Edyl

Estava na fila do cinema, distraído com o nostálgico pulular das pipocas, quando minha aquariana natureza assumiu a condução dos meus pensamentos. Foi um surto metafísico e extra-sensorial em que me senti como um espermatozóide em fila, um gameta desajeitado e apressado esperando o óvulo e a hora certa de adentrar na sala do útero e dali iniciar o maior espetáculo que nos é possibilitado: A Vida.

O cinema do nosso cotidiano é um privilégio incomparável e imperdível. E descobri a importância de assumir a direção dessa epopéia da qual sou o único responsável.

Por mais irmanada que tenhamos uma alma gêmea, dentro de nós existe um cantinho inescrutável, que só se permite nossa própria consciência. E é nesse cantinho onde reside a mais preciosa das preciosidades, a mais extensa das imensidões, a mais perfeita das imperfeições: O próprio EU.

E é dessa ótica, na sua plenitude incompártilhavel, com que sentimos, assistimos, reagimos, dirigimos a Sessão Única em que existimos dia-a-dia.

É no cotidiano que deve ser projetada nossa pequena alegria de viver.

É quando se aprende que não se precisa de um horário predeterminado para sentir o tão aguardado êxtase de um final feliz. Êxtase esse muitas vezes adiado pela expectativa do próximo capítulo, como se o futuro pudesse fazer melhor a felicidade que nos é possível nesse exato instante.

E todas as pessoas com as quais convivemos no dia-a-dia também são personagens. E são conforme as vemos, as julgamos. Heróis ou vilãos, mocinhos ou bandidos, assumem seus papéis conforme nosso prévio roteiro. Mas no fundo, todos refletem um pouco do que nós mesmos somos.

Bons filmes precisam de bons personagens. E todos nós temos um quê de mocinho e um tanto de bandido. Sempre há quem nos veja e nos julgue assim.

Medíocres são os filmes com personagens inflexivelmente definidos, limitados, apresentados por uma visão maniqueísta onde a dicotomia bem versus mal impossibilita a plena compreensão da complexidade humana.

Complexa diversidade que se revela em sutilezas, fonte de tantas belezas.

E quando então na plena direção do nosso próprio filme-vida, a gente corta e evita todas as cenas e todos os gestos que revelam preconceitos submersos, receios imotivados, precauções demasiadas, desconfianças infundadas, julgamentos prévios, censuras dogmáticas, covardia, resignação, conformismo. É quando a gente, tal como joalheiro diante rara preciosidade, aprendemos lapidar a vida e os sonhos para extrair o maior possível brilhar.

Quando a gente se supera do profano medo de compartilhar o sagrado segredo, então sim, se descortina a vida e sua intensa possibilidade. E quando assim, não faltarão aplausos. O aplauso que realmente vale. O aplauso que vem daquele cantinho da alma.

E se tem a vida toda pra se dedicar, com total prioridade, a esse filme. Que seja então um longa metragem com voltas e reviravoltas, suspense e ternura, improviso, romance, riso e aventura. Mais que garantia de um bom filme, essências de um pleno Viver.

Ou então tudo resultará, se não corajosamente assumido e exercido, em um filme convencional e artificial, uma vinheta asséptica e previsível. Algo a ser precoce e definitivamente concluído de forma que, quando não houver mais tempo, de nada adiantará o arrependimento de não ter vivido.

Cronologicamente, sinto que estou na segunda metade do meu filme. Mas agora, dele consciente, nada me impede o constante recomeçar. Posso refazer e ensaiar tantas vezes tudo que realmente acho preciso. Precioso. Conhecer cenários, lugares, paisagens e horários diferentes para melhor ilustrar as cenas do meu cinema. E mesmo alterar o destino dos personagens do meu filme, bastando mudar no roteiro meu conceito em relação a eles e minhas expectativas para com os mesmos.

Não seria um filme pra se lembrar para sempre, mas um sentir diário de perceber o quão raro cada instante.

Por isso vou resgatar minha memória como um flash-back, reencontrar amores, amigos, cúmplices de quando a vida era uma despretensiosa matinê preenchendo as tardes de domingo do menino que não deixei de ser.

Me farei merecedor dos aplausos sem, contudo, deixar que o orgulho que a todos habita me faça cego para os vazios que deixei e que por onde, sempre, vou me esvaziar.

Vou aguçar o senso critico e dar ouvidos ao maior carrasco, oriundo daquele cantinho da alma, para que ele me mantenha no meu devido e reduzido lugar. Que seja ele cruel de forma imprescindível para meu auto-aperfeiçoamento. Tão cruel que me faça invulnerável às agressões, provocações, incompreensões e mediocridades que surgem no dia a dia. Mas também humanamente solidário para me possibilitar a compreensão da devida dimensão das frustrações criadas por expectativas equivocadas.

Me dedicando a dirigir melhor a trama do meu destino, certamente o personagem que sou nos filmes alheios também será melhor. De forma a tornar mais interessante, e mais humano, o cinema da vida de todos que gosto. Até porque são eles, e a vida que compartilho com eles, que fazem constante e crescente meu interesse sobre meu próprio cinema.

O filme- a vida- que faço é o que poderei apresentar ao Deus que acredito. Não terei tempo de finalizar, conforme é previsto no próprio roteiro.

Então a Ele justificarei os aplausos que me permiti e as criticas as imperfeições das quais não tive tempo, ou capacidade, de corrigir.

Impossibilitado de prever seqüência, ou conseqüência, humanamente não posso imaginar final mais feliz.

-------------------------------------------------------------------

CARLOS EDYL SANTIAGO FILHO, jornalista, funcionário administrativo da Câmara Municipal de Três Corações, é mais um que faz analogias entre arte e realidade.

Contato: carlosedyl@uol.com.br

Mais do autor: PULSAÇÕES TRICORDIANAS http://tricordiano.zip.net/

Carlos Edyl
Enviado por Carlos Edyl em 24/05/2007
Código do texto: T499890