Condomínio Nem-te-ligo x Vila Vem-que-tem

Aconteceu no “Nosso Canto”, uma das casas noturnas mais badaladas da cidade. Era um misto de bar e casa de show que agradava pelo bom gosto revelado na escolha das atrações, qualidade dos "comes e bebes" e, sobre tudo, pela figura simpaticíssima do Leonardo Elias, o proprietário. O Leo, como o chamam os amigos, é desses raros sujeitos que sabem flutuar bem entre Barmam e garçom camarada. Daqueles que sabem ouvir e até falar, quando é preciso e permitido.

Fernando Sérvulo, um cantor e compositor relativamente talentoso e quase totalmente desconhecido, cantava para uma platéia atenta e descontraída a um só tempo.

Terminada a última canção, antes mesmo de cessar o eco produzido pelos aplausos, começou um breve e inquietante monólogo, com perguntas de retórica e outras farpas, como era de seu costome:

- Esta música é de minha autoria, e foi composta sobre o soneto “Ora direis” de Olavo Bilac. E então, minha gente, será que essa harmonia simplória e suburbana avilta, desvaloriza o célebre poema do príncipe do parnasianismo? Ou será que, diferente disto, minha modesta mas simpática melodia lhe confere um jeito mais amistoso, aproximando-a de nós, pobres mortais? O que é cultura? Coisa exclusiva, centralizada, vinculada e condicionada a uma determinada classe social, ou multi-facetada, variante de acordo com os conhecimentos, hábitos e preferências das diversificadas pessoas e grupos sociais? Ninguém precisa responder... é só pra refletir.

Neste instante, chega ao salão, Alexandra de Deus, sua amiga e futura sócia.

LÊ: Ei, Fernando!, tudo bem?

FERNANDO: Bacana! E você?

LÊ: Ótima! Muitíssimo disposta.

Garçom, um Martine seco, por favor!

LEO: E você, Fernandão, o de sempre?

FERNANDO: O de sempre, não! A de sempre... Aquela cachaça!

E aí, vamo ou num vamo monta nossa BIROSCA?

LÊ: Birosca? Pensei que íamos abrir uma casa chique!, com comidas e bebidas finas, música, poesia...

Já tenho até um nome!

FERNANDO: Tem é? E qual é esse nome, FRESCAL, é?

LÊ: SARAU CAFÉ! Não é bárbaro?

Imagine! Paulo Autran declamando Shakespeares; Fernanda Montenegro recitando Cecília Meireles; Roberto Ca...

FERNANDO: E onde é que a gente vai plantar a cana-de-açúcar, hein?

LÊ: Como assim? Não entendi!

FERNANDO: Cana-de-açúcar, monocultura, blá, blá, blá...

Cê acha que cultura é coisa só de elite!

PORRA, e o Chico doido, o João-boa-morte, a Ritinha...

LÊ: Rita, aquele homossexual?

FERNANDO: É, aquela BICHA mesmo! Já leu as poesias dele?

LÊ: Ele é inteligente sim, reconheço, mas só escreve pornografias!

FERNANDO: Putarias, você quer dizer, né? Já leu os poemas de luxúria do Drumond? É, o Sr. Carlos Drumond de Andrade, aquele cara franzino, careca, de óculos, ele mesmo... Também escrevia sacanagem, e nem por isso deixou de entrar pra história como um grande poeta.

LÊ: E você, pensou em algum nome pro nosso negócio?

FERNANDO: Claro!

LÊ: E qual é?

FERNANDO: ESPORRO LITERÁRIO!

LÊ: Ficou louco?

FERNANDO: Quer expressão melhor?

Veja bem! Na hora do gozo, quando os amantes viram os olhinhos, um montão de espermatozóides, feito locomotivas, sai “voando” pelo canal entre a vagina e o útero, ok? E se lá em cima, no lugar certo, na hora certa, tiver um óvulo, ou melhor, um ovócito madurinho... aí rola a vida.

“É a ânsia da vida por si mesma” (GIBRAN KALIL GIBRAM)

Tá vendo? Eu também tenho algum conhecimento.

É isso que eu quero, vida com arte...

Quero misturar esse povo. Mostrar a riqueza de um pro outro. A gente pode promover a noite do Nem-te-ligo e convidar todo mundo, inclusive o pessoal do Vem-que-tem, e vice-versa.

LÊ: Que tal, então, se a gente montasse o “CAFÉ DE FRONTEIRA”? Bem na divisa!

FERNANDO: Fechado, princesa! E se a gente misturasse um pouquinho as nossas culturas só pra dar o exemplo, hein? Quero provar uma dose do seu Martine, agora!

LÊ: E eu vou dar um tapa na sua pinga.

Chico Rosa
Enviado por Chico Rosa em 29/05/2007
Reeditado em 05/02/2009
Código do texto: T506063