RECORDAÇÕES

RECORDAÇÕES

Caia a tarde e as cores do crepúsculo esmaeciam em semitons róseos no horizonte distante.

Deparei com as sombras no seu olhar que fugia do meu. Tomei suas mãos que se abandonaram nas minhas, frias, inertes. Havia em tudo despedidas: nas flores fanadas; na mesa posta onde o chá intocado esfriara; na brisa estagnada; nos gestos reticentes... sobre tudo, pairava o silêncio com seus pungentes gritos de adeus.

Era o fim...

Já se tinham pronunciadas todas as palavras; as esperanças massacradas jaziam mortas.

Meus passos percorreram o corredor apenas iluminado pela luz zodiacal; com mão trêmula, abri a porta e cerrei-a atrás de mim; devastado desci os seis degraus da escada (contava-os impaciente, no passado, quando os galgava efervescente, vindo ao encontro da felicidade); a rua solitária e seu denso arvoredo acolheram-me insensíveis.

Vaguei pela noite incipiente, à espera do negror de sua sombra profunda; no meu peito ardia a angústia, dos meus olhos as lágrimas insubmissas resvalavam quentes, amargas.

Bem mais tarde voltei... Transpondo a escada, abri a porta; percorri, pela última vez, a casa calada e soturna: armários escancarados e vazios; a estante sem livros e adornos, se assemelhava a um espantoso esqueleto; nas paredes, retângulos desbotados, mostravam a ausência de quadros e retratos.

Voltei a conduzir minha vida não obstante a dor da sua ausência, do caos da desdita, da inexorável inercia da esperança, dos ressaibos da revolta...

O tempo reconciliou-me com o perdão, mas não com esquecimento.

Recordo sua face desnudando sorrisos, sua voz acariciante, o meigo toque de sua pele cor de mel, seus arroubos de amor, sua inesquecível presença... Mas já não estremeço lembrando seus dias sombrios, seus desajustes, suas fugas, seus tropeços, sua inexplicável solidão.

Sei que em algum lugar em certa hora, você marcará a página do livro que estiver lendo; colocará no fogo a chaleira com água para aquecer; enfeitará a mesa com flores; nela deporá a toalha de linho, os guardanapos bordados; cuidará que haja bolos e delicados biscoitos; escolherá a melhor porcelana para servir o chá.

Não importa que, para a cerimônia, sempre existam convidados.

Além de você apenas mais um já basta para encerrar o ciclo de uma tarde prazerosa.

Quando a noite vier, entre murmúrios e silêncios, haverá uma cama desfeita: vestígios da volúpia trocada num ardor intenso; repouso de mãos exangues e corpos saciados.

E alguém partirá após um beijo de adeus. E, lá fora, transposto o umbral, há de voltar-se e verá o seu vulto à janela. Ao vislumbrar o encanto de seu sorriso e sua mão erguida num derradeiro aceno, esse alguém sentirá, como eu também outrora senti, a inefável ilusão de estar vivendo uma inebriante e duradoura felicidade.

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hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 24/12/2014
Reeditado em 20/04/2016
Código do texto: T5079689
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