Inquilinos
descobri que em teu corpo ainda habita um inquilino. eu também já tive uma. que espantava qualquer ser que tentasse violar minha solidão. foram longos anos. pra falar a verdade, as coisas dela ainda estão por aqui. e acho que nunca mais voltará para buscá-las, mas tratei de juntar tudo em um caixote e trancar num quartinho lá nos fundos. junto das antigas lembranças. sabe, o pior de ter alguém habitando em você é não poder abrir a porta para outras pessoas. quer dizer, abrir a porta até dá pra fazer, mas só pra receber visitas curtas, ninguém que passe muito tempo ou faça alguma diferença. as vezes penso que a alegoria da caverna, de platão, se refira a esse estado de espírito. o de ter alguém morando em você. pois, quando você sai dessa caverna, ou melhor, quando você deixa o teu inquilino ir embora, seus olhos tendem a abrir para um mundo totalmente novo. óbvio que no começo a luz vai te cegar, você vai sentir falta de ter alguém habitando em si, mesmo que isso te traga más lembranças. é desesperador achar que jamais sorrirá para outro alguém. que tuas chaves ficarão pendurados ao lado da porta, sem nunca serem entregues a outro indivíduo. nada que o tempo não resolva. logo, você verá que existe vida fora da caverna. ou melhor, fora do teu corpo. dia a dia tenho aprendido a libertar ainda mais os que aqui já habitaram. e acho que estou indo bem. não existe regra ou segredo para isso, apenas deixá-los partir, afinal, somos nós que possuímos as chaves. outro dia descobri que em teu corpo ainda habita um inquilino. sei que as coisas estão difíceis, que ele te prende a garganta e corrói o coração. sei que as lembranças ainda te causam calafrios nas coxas e lágrimas no olhos. mas estou aqui, batendo à porta. terão dias que eu irei embora. vou sair por ai, espairecendo a cabeça. provavelmente verei um filme sozinho e tomar um bom café com leite. mas queria que soubesse que, por via das dúvidas, deixei um cópia da chave embaixo do teu tapete.