Acontecesse

saulo conhece paula. ficam juntos. paula deixa saulo. saulo tira a própria vida. eis o resumo da ópera, que não interessaria a ninguém. Mas e se saulo além de um suicida, fosse também uma pessoa, nascida em algum dia 23 de algum mês de 94? tivesse um cabelo escuro, comprido, ondulado, a que quase pudesse chamá-lo cacheado, ruim? e se saulo tivesse uma alma que amava as forças da natureza e o pensamento humano? e se saulo não fosse apenas um suicida? talvez rendesse mais leitores a história de nossa personagem.

e se saulo tivesse conhecido em paula algo ao qual pudesse chamar primeiro amor; levasse flores, compusesse algum versinho meloso; encontrasse o primeiro hálito da mulher carinhosa em sua boca suave; também molhasse com o suor do corpo desnudo algum lençol; sonhasse uns nomes para os filhos já existentes num mundo imaginário e viagens para uma Bélgica selvagem?

talvez encontrasse, o nosso provável apaixonado, a mesma felicidade de um descobridor nos primeiros dias da terra nova; os primeiros frutos da árvore plantada há 7 meses no jardim da casa recém-paga. quiçá não se lhe descortinasse a solução para a solidão com quem vivera ao longo de toda a sua possível vida melancólica, desagradável? em becos escuros descobrisse partes sensíveis do corpo de quem ama e deseja com tudo que dispõe e com o crédito do homem cego pela ambição desenfreada: vai a Lua ou forja o aço para derrubar o sangue de quem lhe oferece resistência.

vivesse já feliz há dezenove semanas quando encontrasse a quem jurou amor perpétuo e pretendia manter promessa nos braços de um outro alguém, sem nem que se lhe dignasse uma palavra ou duas, três, pedindo desculpas pela fraqueza e imundície.

sem buscar satisfações para pagar talvez o seu ódio, encontrasse nenhum meio mais que a rendição à deusa maior, que guia pelos vales escuros a todos que um dia respiraram. total abdicação pudesse oferecer apenas o silêncio dos vermes que cresciam em sua consciência ou também seu alimento, tornando-o útil a qualquer empresa do ciclo natural terreno.

com o revolver já engatilhado, sem que se lhe escorresse o salgado da lágrima, puxasse com o dedo da consciência frouxa e estourasse os miolos da mente, vendo o próprio corpo bater contra a parede; ato contínuo imitar a imaginação qual autômato e abdicar da graça divina.

quem sabe, fosse uma pessoa, não apenas um suicida, rendesse mais do que um rodapé no jornaleco da esquina.

Aureliano Henemann
Enviado por Aureliano Henemann em 23/08/2015
Código do texto: T5356612
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