A morte mostra que tudo é carne (um texto que ninguém quer ler)

04.09.2015

A morte mostra que tudo é carne.

Tudo é material, tudo é uma conjunção magnífica de ossos, órgãos, vasos, células trabalhando em harmonia. Como se fossem um, e dão a ilusão que você é um, um ser indivisível e inviolável.

Mas a morte mostra que sua carne são partes, são harmonias que podem soar horrorosas, enquanto um outro conjunto toca a música mais melodiosa. O corpo tem seu próprio tempo, sua própria programação que se pretende pela eternidade e realmente o é, até começar a falhar, a se desgastar e com isso se distrair e perder o tempo.

A morte é totalmente física, ela é totalmente feita pela carne. A carne se sabota, e se retorce ao contrário. A morte não é um conceito espiritual, não há nada de espirituoso ou religioso nisso. Há uma contorção, há sinais do corpo de que ele quer parar e nada poderá ser feito. O sofrimento é um conceito imposto, ele é obrigatório, alguns são mais longos, muito mais que outros. Mas o principio é sempre o mesmo. A morte contorce os seres, torna eles disformes.

A carne morta se contorce, e é inexplicavelmente distante do que a carne viva. Já não é um ser vivo, já não é alguém, é um corpo. Sua identidade se transmuta na contorção. É inerente ao processo de morte. O corpo morto jamais será como o corpo vivo, nem se assemelhará de forma alguma a ele. No corpo morto não há lembranças quando o olhamos, não há todos os sentimentos que o corpo vivo nos evocava, há um fantasma disso tudo. Apenas nossa própria memória guarda isso, nossa mente que amou e ama preserva o corpo vivo, o ser amado. O corpo morto carrega algumas características do corpo vivo que vão se apagando lentamente, como a temperatura, e algumas que se apagam num instante decisivo, como o brilho dos olhos, a respiração, o batimento cardiaco.

Para os seres ainda vivos, é preciso um tempo para se despedir, porque a morte para nós não é instantânea. Ela vai se consolidando conforme as horas e a consideração dos fatos, que algumas vezes precisam ser reaveriguados. Pois existe uma distancia emocional que precisa ser transposta, e faz com que a morte pareça um sonho, algo imaginado e não vivido. Só a rotina que se seguirá após a morte consolidará a morte. O estado de suspensão é um estágio de amadurecimento. Quem se depara com o processo carnal da morte jamais poderá ser o mesmo que antes. A morte não tem nada de espiritual. A ideia de morte espiritual vai se construindo enquanto vamos nos distanciando da morte real e entrando na esfera da memória e da lembrança. É uma idéia construída, não natural. Mas queremos naturalizá-la, para nos gerar conforto. Porém, não há nada confortável na morte, somente a certeza do fim do sofrimento, que sustenta nosso emocional como uma condição muito forte e produz tranquilidade. Os dias que se seguem vão desviando a atenção dos fatos para as coisas reminescentes, os objetos. É impossível conciliar as memórias evocadas por eles com os fatos, ou seja, a carne morta. Por isso burlamos a lógica - como em tantos outros casos - e iludimos nossas mentes a acreditar em algo falso: na beleza e nos mistérios da morte. Mas a morte é um conceito carnal, ela só existe na carne, ela é tenebrosa e é a força mais poderosa que regerá a vida dos seres que se confrontaram com ela. Não há beleza nisso. Não há nada.

David Ceccon
Enviado por David Ceccon em 05/09/2015
Reeditado em 05/09/2015
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