QUANDO TE PERDI

QUANDO TE PERDI, acabei por viver um pouco em paz, sem tensões e sem ansiedades, sobretudo sem angustiosas esperas por impossíveis sonhos.

QUANDO TE PERDI, sobraram horas para executar grandes e pequeninas coisas, sempre adiadas ou esquecidas: arrumar gavetas, consertar defeitos dos objetos, rasgar papéis, limpar armários, doar velhas roupas, atualizar correspondências, visitar velhos amigos, dedicar-me mais à família e aos estudos, contemplar a natureza, exercitar o corpo, a mente e o esprírito - e sobretudo a paciência -, ajudar aos demais quando possível, ler quase o dia inteiro, passear no calçadão, sentar à beira-mar, ouvir o barulho da chuva caindo e, com grande disponibilidade, chorar.

QUANDO TE PERDI, enfrentei, essencialmente, o sólido e espinhoso entendimento de que o "amor" possui muitos caminhos. Soube, sangrando, que o rumo da saudade é a única trilha para chegar à cura da paixão. Senti, pulsando, que todo afeto sulca marcas no invisível do que somos, daí resultando o visível vir-a-ser, no que fomos.

QUANDO TE PERDI, passei a horrorisar-me com o risível egoismo recíproco dos amantes que só olham para os seus respectivos umbigos. Aprendi que é melhor ceder que exigir e que o exemplo é a melhor forma de educar.

QUANDO TE PERDI, busquei todas as desconhecidas estratégias do recomeçar: pintar novos cenários existenciais, com novos pincéis que fabriquei em nome do desespero de viver; ouvi músicas que jamais passaram pelo meu repertório favorito, tentando nelas descobrir significantes e significados ignorados: reavivei o quanto meus desejos e prazeres infantis ainda estão insepultos, a despeito do muito que deles deixei enterrar, por obediência às convenções e às imposições; (re)acendi o derradeiro fogo vivo que sempre iluminou minha busca pela felicidade, e que foi justamente apagado quando me levaste à terna sombra de um convívio, onde nossos corpos começaram a ter luz própria.

QUANDO TE PERDI, pedi ao primeiro pássaro volateante que levasse minha mensagem a todos os solitários, por aí abandonados: - É preciso crer que tudo muda – as pedras mudam, os tempos mudam, os amores mudam, as pessoas mudam de um sol para uma lua. E mais: segui o andejar das formigas, delas assimilando lições de cooperação, de servir, no destino do imenso formigueiro que é o mundo, sobre o qual passamos, felizmente.

QUANDO TE PERDI, em conseqüência de todos os meus erros, reconsiderei idéias básicas sobre “posse” e “liberdade”. Proclamei minhas falhas, omiti as tuas – se é que existiram -, e tentei, por vias que desconheço, atingir a tranqüila serenidade de não exigir dos outros o que não posso cobrar de mim mesmo.

QUANDO TE PERDI, todas essas aprendizagens acima descritas foram e estão sendo vivenciadas e consolidadas – eis o que me dizem os amigos, os analistas, os conselheiros de rua, os experientes da vida, os professores de humanismos vários, os filósofos, os psicólogos e, até, os metafísicos. Porque eles sabem de tudo e possuem remédio para quase todos os males.

QUANTO A MIM, com toda a loucura de existir que é a minha plena lucidez, só posso incansavelmente afirmar que: QUANDO TE PERDI, PASSEI A DESFRUTAR DA SENSIBILIDADE EXIGIDA PELO MUNDO DOS AFLITOS E CARENTES, PASSEI A SER MAIS HUMANO, MENOS EGOISTA E IMPLACÁVEL, PASSEI A DEDICAR-ME UM POUCO MAIS AOS OUTROS, ESQUECENDO-ME, POR ALGUNS MOMENTOS, DE MIM MESMO. ENFIM, PASSEI A TER UM POUCO DE PAZ. POR ISSO, AGRAÇO-TE POR TUDO O QUE NÃO TENHO HOJE E POR TODOS OS ERROS NEFANDOS QUE DEIXEI DE COMETER. E TUDO ISSO, GRAÇAS A TI, QUANDO TE PERDI.

--

Adaptação do texto de Pablo Neruda, em “Defeitos Escolhidos & 2000”.