Marcilento

Tarde demais para tudo! Recôndito, encoberto pelas nuvens da efemeridade, o dia esvaece silente. Nenhum olhar de soslaio nos cantos do cômodo; nenhum riso sarcástico pelas vielas. Onde vais com tamanha carranca?

O mundo se resumia num aglomerado de cenas trágicas e desconexas mantendo uma única ligação: a dor profunda que perpassava todos os atos. Marcilento marchava mudo na escravidão da rotina; o que mais podia fazer?

Arrepio frio na alma!

Os sons repercutem em cada fibra sensível. Desleixo, opróbrio, torpeza eram as palavras acalentadoras da manhã. Um dia a mais ou a menos; não havia diferença sutil na vicissitude do tempo ordinário. Siga a sina e nada te perturbará!

Marcilento vivia sedento pela extinção, pela finitude, pela desgraça global. Era um Doente, não um hipocondríaco, mas sofria verdadeiramente de várias enfermidades. Sua visão das coisas estava contaminada. Carregava na pele os sintomas da perdição e almejava de imediato a sagrada morte.

O aglomerado de lembranças tendia ao desvario. Tardavam, chegavam vacilantes, como lapsos fugidios e tomavam forma na psique fragilizada. Mas Ele sabia quem era! Reconhecia a si próprio na mais devastada paisagem.

Para quê tamanha desolação?

Décadas já se sucederam e assim mesmo Marcilento vagava na busca eterna de uma reconciliação com a vida malograda. Queria sim, mais do que se podia cogitar... mas não revelava sua sórdida esperança. Havia o porvir (sempre ele) com novas matizes para ludibriar o siso. E à toa tudo permanecia intocado.

Por que temer?

Bem, era simples demais – por um ponto de vista, daqueles que estão fora – escolher a suspensão do corpo. O certo é aceitar como o anátema cármico das escolhas equivocadas desta vida presente. Ainda assim, arrastar a carcomida existência, isenta de futuro, exige uma insuportável ignomínia.

Persistindo ainda! Esperando ainda?! Seguindo as trilhas do acaso... nada pelo caminho. Nada! Por quê? Segue adiante, nas bordas da ribanceira, persista.

Marcilento teimava em viver só! Não, ele não queria. Não teimava. Conspiravam para que fosse assim. Talvez tivesse culpa! A era dourada dos românticos há anos tinha encontrado seu término. Era um póstumo.

Como suportar? Fácil, encher-se de amor-próprio, orgulho e desprezo pelas coisas mais aprazíveis; evitar as promessas da alvorada. Não ser!

Ele tentou, mas o peso da solidão lhe fustigava com pancadas contundentes; desmembrava cada desejo mínimo. Sobrava o momento perdido, um espaço em branco que não podia ser preenchido, apenas para ser vislumbrado como punição ou angústia.

Os momentos tornavam-se repetitivos. A mesma sensação corroía o âmago desgastado. Tormentos reprimidos saem à solta, esmagam o peito. Vultos pretéritos sibilam, estão na espreita, sentem no ar a tortura outrora vilipendiada na ilusão de um recomeço. É a mesma coisa de antes!

Imóvel, atacado em sua fraqueza, Marcilento se entregava ao delírio sombrio. Não viu o intrépido devaneio prestes a nascer nas trevas que o corrompia. Simplesmente fechou os olhos carregados e deixou a gélida derrota assumir seu corpo.

Marcell Diniz
Enviado por Marcell Diniz em 11/01/2016
Código do texto: T5507376
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.