SIMBIOSE

(Claude Bloc)
 
Nada de atropelos, nesse meu dia quase sem sol. Somente o som macio de um vento leve na folhagem e as minhas costumeiras pausas para me sentir em chão seguro. Creio que ninguém entenderia essa minha necessidade de estar naquela casa onde só bailam até hoje meus fantasmas queridos. Mas necessito desse conforto e desse consolo. Coisa essencial ao meu equilíbrio.
 
Cada vão, cada parede, cada objeto, do maior ao menor, forma sempre um elemento a mais em minha mente onde se entreabre a espiral da minha alegria. Ver, tocar, transitar dos quartos à cozinha perscrutando todas as lembranças com olhos, me projeta a um momento distante e traz de volta gestos antigos desenhados com uma elegância forjada na sensibilidade e sentida estranhamente com esse toque leve das mãos por todos os recantos da casa.
 
Nunca medi a extensão do meu amor à casa que foi meu berço. Mas ela se torna vez por outra o meu tema central. Como se eu estivesse ligada a ela por um cordão umbilical e repousasse nela como num útero materno. O que sei hoje em dia, é que nela sempre coube o mundo que eu imaginava. Para além do portão, um universo todo se estende entre ocres e verdes e se dilui no horizonte, confundindo-se com o Alto do Caboclo.
 
Naquele tempo, quem disse que eu precisava mais do que aquele enorme espaço à minha volta? Uma horta cheia de verduras e legumes ostentando a beleza do verde e o frescor das manhãs de inverno. Bulgari, japão, buganvília vermelho-vinho... Os pés de cajarana, os pés de pinha e de goiaba. E as nuvens que eram um paraíso que me acolhia com uma generosidade sem fim. Se faltava alguma coisa, eu ia buscar na imaginação, não sei de onde... e me pendurava nos fios de uma criativa parceria com as réstias da luz do sol.
 
O terreno se espichava em volta da casa por um imenso terreiro e lá atrás terminava num grande quintal onde moravam o velho barrão muito brabo, um casal de veados e uns porcos-espinho. O muro que cercava esse meu domínio servia de limite entre a casa e outro espaço que se avizinhava. Eram terrenos cobertos de cana fístula, marmeleiros, juazeiros e outros arbustos da caatinga, que vigiavam esse meu mundo silenciosamente, sem vozes, mas com os ecos dos meus passos que aprendiam a lidar com a vida do sertão.
 
Eu acreditava que toda aquela terra era o que sobrava do meu universo particular. Por isso não me interessava em subjugá-la aos meus sonhos. Preferia ver o que os olhos me regalavam. E acompanhar indefinida e morosamente aquelas estradas que ziguezagueavam por ali e que se confundiam com os meus anseios.
 
Minha mente, talvez sem o saber, desenhava o ciclo do tempo... Amanhecia, entardecia e, então, anoitecia. Me parecia poder regular o tempo e eu cria adequá-lo à minha existência pelos acordes do pôr do sol. Assim, eu imaginava que a vida se fazia, entre a claridade e a sombra. Pouco importavam pra mim o mês ou as estações do ano, valiam apenas as sensações que variavam em torno da luz do dia ou da escuridão da noite.
 
A casa era a minha vida junto a seus personagens. Uma perfeita simbiose que clamava por felicidade. Eu conhecia todos os cantos e recantos de cada aposento. E assim, nas horas tristes eu invadia meus pequenos espaços secretos e amava essa variação de contrastes.
 
Mas como dita minha memória, tudo isso foi ontem. A casa ainda existe, mas o tempo hoje me amedronta e me faz sentir a consciência do existir.
 
E lá se vem mais uma noite protetora (re)acendendo a lembrança dos meus medos infantis. Hora do banho. Hora da janta. Hora de desligar o gerador e dormir engolida pela escuridão.