O Divã Do Ediondo
Uma confissão do heterônimo sobre seu criador.
Antes o Édi que é n'onde eu o ediondo moro
Proseava sozinho nuns cantos escuros
Porque sua escrita desordenada
Pensava ele não era boa para dividir
Ele emprestava d'umas vírgulas pra separar as ideias
Depois escondia num baú feito c'umas tábuas velhas
Pois sentia uma vexa de tudo que concebia em escrita
Já eu levitava transparente num vácuo dentro dele
Existia ínfimo num abismo
Nada tinha de consórcio com as demandas da importância
E nem da culpa que os homens sentem por certos atos
Tão pouco compreendia seus motivos e suas justificativas
Quando vi o Edi pela primeira vez
Foi naquela noite dos diabos
Donde emergi da erosão d'um escuro que tinha dentro dele
Mas que foi sendo iluminado pelo arrojo das letras
Que o transformavam lenta e gradual
Notei que ainda estava nas primeiras barbas
Mas já era do mundo por uma sua escolha
Falava sozinho numa varanda com goteiras
Discutia consigo umas ideias comunistas
Enquanto perdia volume seus caracóis negros
por causa da insistência úmida das gotas
Os relâmpagos feriam o escuro
E os raios redesenhavam o céu daquele agosto
O poverelo matutava solitário
Uma síntese sobre a razão e a bestialidade
E a tênue cortina que as separa
Dei-me conhecer à sua luz e me fiz notar
Esmolando à sua razão com um argumento
Para que ele não discutisse mais só com a solidão
Sobre todas as inquietações que as madrugadas trazem
Ele olhou-me demorado c'umas retinas castanhas
Deixou-se estar a mim por casa
Concordou a termos uma simbiose
E batizou-me por este nome horroroso
Por causa das muitas verdades que os homens rejeitam
Por lhes ser difícil erguer-se sem uma paga
Estabeleceu uns limites fedorentos
Aonde eu o ediondo ficaria só com os ditos
O sentir o abstrair e os demais seriam dele
Eu cogitei do meu abismo as quinas e as esquinas
Aceitei suas verdades suas mentiras e seus fingimentos
Ele quase chora por causa dos seus trololós
Se eu conto até periga a verdade mas o é
Juntos nós conhecemos 'Marx' e suas vertentes inglesas
'Braudel' da Nova História e suas desconstruções
Até engolimos o Capra e seu ponto de mutação
Rejeitamos o positivismo do Auguste Comte
Por que o Édi disse que as violências da polícia são tudo culpa dele
Pois para aquele um em tudo o Estado tem que por umas regras
E que por causa disso o Édi tomava uns tapas na cabeça
Daqueles policias do demônio lá em Chapecó
Na segunda metade daquela paradoxal década de oitenta
Mas também nos emocionamos com a solidão
Contada magistralmente por aquele Garcia Marques
E falamos em voz alta os divinos versos
Daquele Ovídio e suas metamorfoses
Então veio a morena ter com o Édi
Linda como aquela alumiada e suspensa lá no alto
Parecia uma cutia esbelta dos pampas
Estava sempre com aqueles olhos verdes e aquelas coxas
Com aquela voz macia e palavras breves
Se espreguiçava todas as manhãs
Parecendo uma felina que ajusta o pelo na relva
Como ele pode ter querido a ela? [...]
Ele deu a ela quase todo o seu tempo
Nem me cogitou na sua soma comunista
E ela também fez casa dentro ele
Era dengosa mas determinada como um pantera caçando
Então ela acordou numa madrugada
Nos pegou bem no meio d'uma conjectura infernal
Sobre aquele Dante e a sua comédia
Discutíamos em qual cornija ficaríamos se conseguíssemos
Escapar do círculo que nos coubesse lá daquele seu inferno
E abriu o maior berreiro do mundo
Pois aquele corrupto do Edi nos mantinha em segredo
Agora ela vive a me cutucar
Afirmando que o Edi é só dela
Que eu sou um emboscador que tem medo da luz
Um pretensioso e linguarudo do inferno
Mas o que mais me dói
É que o Édi a abraça apaixonado
Mesmo depois de ouvir todos esses adjetivos imerecidos
Que ela em seu amor diz que sou
Mas os dias foram passando inevitáveis
E nós continuamos especulando através das madrugadas
Sempre negociando com as vírgulas e com o que elas separam
Até que por fim ele as rejeitou
Ficamos só com a oração inteira
Porque pensar pormenores roubava a graça
Nos impedia de discordar sem culpa
A esta altura já tínhamos um telhado sem goteiras
Éramos num certo sentido universais
Sem nunca sair do sul do sul
foi quando uma Serpente nos achou
Foi a letra dela que fez o Edi retroceder nas suas rejeições
Retornar a negociar com as vírgulas e suas intransigências
Pois ela exemplificou que o pensar é um
Mas a escrita é caprichosa em sua natureza
E considera um insulto o descaso do Édi
Com uma de suas filhas mais destemidas
Porque a coragem delas separam as ideias no meio das frases
Evitando contendas e mal entendidos no contexto do texto
Num canto da sua mente que ele não me deixa entrar
O Édi se agradou dos humores daquele anjo
E agora tem tratos de coruja com ela
Tratos que ele não me deixa participar
Pois diz ele_"A tua parte são só os ditos"
Aquele desgraçado vive dizendo inverdades
Inverdades de que eu reclamo do muito que tenho
As vezes eu penso naquele meu abismo
Mas é muito solitário lá
E eu ajudei ele com as goteiras e...
Mas se o Édi tem segredos
Eu também tenho um
Tenho um que me faz mui contente
Um que ele nunca vai saber
Nem poderia pois não é sensível
Não o suficiente
Desde que aportamos nesse recanto
Tem uns que decidiram nos acompanhar
Sem nunca se anunciar
Sempre nos visitam em silêncio
Sorriem com nosso humor
Se emocionam com nossos causos
Se entristecem junto com nossa tristeza
Nunca nos veremos refletidos nas retinas
Mas sabemos uns dos outros
E isso só já é o suficiente...
Nota: O ediondo é meio psicótico e não controla bem suas emoções, frequentemente se perde no seu próprio desequilíbrio por ter sido concebido sem consultas antagônicas coerentes. Esse era o objetivo, até aqui ficou claro que não é fácil ser ediondo, porque o nosso lado ruim todos queremos suprimir. Mas eu, o Édi, concordo bem pouco com ele, mas como eu disse, não é fácil ser ediondo e ser ouvido, as pessoas querem distância do que o termo representa, embora ele não seja escrito desta forma que usei. [hediondo é a grafia correta e, do grego, significa mais ou menos como algo que cheira mal, mas que se reporta precisamente as condutas humanas]
Este é pra você que sempre me visita, mas nunca diz nada. Pois não conta quem escreve a palavra, mas sim o que a palavra diz. Obrigado.
Sobre a coisa da vírgula, é que quem domina pouco a escrita, as vírgulas são um mistério de dar raiva. Que o digam todos os professores na hora de corrigir as provas. Abraço.