Uma tigresa

"Ela me conta, sem certeza, tudo que viveu

Que gostava de política em mil novecentos e sessenta e seis

E hoje dança no Frenetic Dancing Days!"

(Caetano Veloso: Tigresa, 1977)

I

Noite de sexta-feira, quase sábado.

A vitrola chia “Hey You”, uma velha canção do Pink Floyd na agulha gasta. Velho diamante eterno percorrendo os sulcos em espiral negro.

Na verdade, não quero falar sobre as canções do Pink Floyd; mas sobre um fato curioso ao dia seguinte àquela noite etílica.

Algo Pink, tão Floyd! Como a própria música popular do século passado.

Inefável, como os membros do Pink Floyd trabalhando em conjunto, criando canções atemporais em seus discos eternos.

Arquitetos emanando amor pela humanidade!

Amor pelas Eras; por meio de instrumentos musicais elétricos em interpretações cósmicas definitivas.

Muito Pink e tão eletricamente Floyd!

Como ouvir uma sinfonia às margens de uma cratera de um vulcão em erupção.

Sensação “plutônica” por resignação do distanciamento entre todos eles, entre todos nós; pela simples fatalidade do intervalo entre corpos no espaço.

Pelo karma na mochila que pesa em nossas costas e que carregamos durante toda a viagem celestial, nesse trajeto de dúvidas e incertezas métricas.

Um som transcendente que nos conecta e inebria.

Confortavelmente tóxico e entranhado em nossas sinapses nas nossas manhãs de cada dia.

Como uma classificação em ordem estabelecida de: “ter sido” e agora “não ser mais”.

Então, subo e vago. Minha velocidade aumenta, me elevo.

Vejo a praia, o mar, o oceano. Vejo ilhas e olho para cima.

Conto estrelas e olho para baixo. Sobrevoo a “bota” e avisto Pompéia. Vejo sua tragédia petrificada. Desvio meu olhar à Roma e só enxergo o vazio da praça São Pedro!

Assim como eu me vejo, avisto um vazio inteiro, saciado pela metade; na metade de um dia.

Ainda estou na metade da vida?

Casado, pai, filho e indeciso pelas incertezas das nossas vidas frágeis e duvidosas.

Coisa estranha é poder gritar e resistir. Então, me calo!

Coisa boa é me sentir vivo e, sobrevoando Paris, poder ouvir Jim Morrisson gritando lá de baixo:

“Alive she cried!”

II

Me animo e, voltando às reminiscências, lembro-me da sede estranha que sentia ao acordar naquela manhã ensolarada.

Se não me engano, o primeiro dia daquele mês que sempre aparece em meu calendário anual.

Um mês de crianças santas, doces e bruxas.

Na noite anterior, de volta para casa, havia bebido uma garrafa de tinto seco. Havia cacos pelo chão.

Usei algumas taças de vidro opacos, compradas na feira que os chineses promovem naquela rua estreita no centro comercial abandonado.

E, me lembrei que em setembro nunca chove, só venta!

E ventava muito em minha cabeça; naquele tempo seco, como um vinho tinto servido em cristal empoeirado.

Mas, isso não vem ao caso.

São apenas detalhes para serem refutados pelos depreciadores de Jack, Walt e Allen.

Aliás, não prolongo ou me exito nesta narrativa, não obstante, me lembro de tudo como se fosse há horas atrás, um "quase ontem".

Antes, preciso contar sobre minha viagem rumo ao norte e o desconforto da floresta em que habitei.

III

Algumas pessoas próximas me enviaram para longe.

Fui mandado para a zona equatorial e, por duas semanas, fiquei distante deles e de mim.

Sob a chuva que insistia em transbordar o rio, morei sobre árvores colossais.

Muitos mosquitos se fartavam num banquete de sangue e quando a noite caía eu não conseguia dormir sem eles. E sonhando com violinos e pianos oníricos, caído no sono; voltei aos trópicos caminhando.

Cheguei ereto, sem as tralhas que levei, carente e necessitado de uma xícara de café.

Só vestia a roupa da alma.

Deixei de lado a saudade do mosquito que me doou o seu sangue e me ajudou a consertar o meu pé e minha cabeça rapidamente, sem a ajuda do neuro-mecânico.

IV

Enfim, pus fim a guerra fria e desativei a “Bomba H”; depois que George Orwell me avisou sobre os perigos dela em minha cabeça.

Manuseando átomos, usei as duas mãos e minha bengala escorregou, caí também.

Rastejando, afastei-me dela e do cálice de prata de meu pai.

Ele estava vazio, sempre vazio, assim como eu.

V

Vazio, desde o nascimento marcado na folhinha do calendário; desde o futebol no rádio, desde o finado século passado e suas cores em “Preto e Branco”, a Legião da Boa Vontade nos intervalos da TV e as boas novelas de Dias Gomes no horário nobre da emissora global.

Desde o girar e apertar dos botões, desde as telas analógicas, os sermões e as violações permitidas sob sigilo velado no lado escuro da praça. Com acne, fingia ser feliz e ria de mim mesmo distante do espelho.

O barulho da máquina de escrever ainda soa em minha cabeça e me pego preocupado com o dinheiro que gastei com revelações de filmes “Kodak”.

Na farmácia comprava pomada “acnase” e ao lado dela, comprava LPs e gravava fitas K7.

Lia revistas pop e colecionava figurinhas repetidas.

Desde que tinha dentes de leite fixados em minhas gengivas rosadas eu era um esperançoso espectador da TV e um ingênuo amante da música.

Aos poucos, todos eles "caíram" e minhas gengivas já não são tão rosadas agora.

Passei a beber cerveja, vodca e vermute nos finais de semana juvenis; enquanto os dentes, agora permanentes, amarelam e apodrecem em minha boca negra.

O ato de ingerir álcool, sempre me pareceu uma terapia eficaz para sobreviver ao passado, sobreviver a falta de perspectiva presente e a farsa futurista apresentada, para nós, em 1988.

VI

Então, se fez a luz!

Apertei o botão bege de plástico sujo, fixado na parede e a lâmpada se acendeu. Mariposas a rodearam e voaram em círculos a noite toda em volta da luz amarela.

Milagre da companhia de luz e a conta paga por mamãe, amém!

Veio-me o novo século como uma dádiva do deus Cronos, e a “indústria” me seduziu com a “nova mídia”:

O CD e seus aparelhos em “stand by” com luzinha vermelha acesa.

Tanto Philips, Gradiente, Sony ou Sharp, nenhum prestava, todos nos seduziam!

Mas só descobrimos isso vinte anos depois da “Zona Franca de Manaus” flutuar e desaparecer sob a margem esquerda do Solimões.

Entorpecido pela “Era Digital” abandonei meus LPs e passei a comprar CDs, nas extintas: “A Especial” e "Revolusom" no centro dessa "zona" que é Franca.

Não considero um erro essa permuta.

Não obstante, ampliei meu acervo musical, conhecendo obras inacessíveis no formato analógico anterior.

VII

E, assim, anos se passaram.

Veio-nos o MP3, as plataformas para download, o acesso virtual aos clipes de música via “Youtube”, os livros críticos e sugestivos sobre “O que ouvir antes de morrer”, os blogs de crítica musical e mais livros e mais blogs, listas e mais listas de revistas do gênero.

Também perdi várias noites de sono, elaborando listas criteriosas para eu mesmo critica-las ao amanhecer.

Passei a comer listas no café das manhãs desesperadas.

Não queria mais compará-las, não queria mais “omeprazol” com laranja, não queria mais CDs da Ásia.

Dava-me azia só de pensar como seriam meus dias vazios, preenchendo listas “Top 5” sobre os “melhores disso e daquilo de todos os tempos”.

Mas, naquela manhã, tomei uma limonada; depois de um “reconhecimento de firma” no “cartório pop” da “cidade underground” e, claudicante, me desloquei, de bengala atômica ao reduto adocicado da zona norte; próximo ao presídio abandonado das almas abandonadas, sentenciadas e punidas, enclausuradas!

Almas punidas pelo corpo prevaricado e vazio, delinquente, gélido e perigoso.

VIII

Próximo a esse lugar, há um reduto adocicado; de uma figura doce, excêntrica e singela, que coleciona e comercializa mídias, em seus mais diversos formatos: de CD a K7 entre livros, DVDs e LPs.

Atravessei a rua e não pude deixar de notar uma figura ímpar entre as fileiras de discos, naquela loja de doces amargos e discos usados, na cidade do couro e dos córregos transbordantes.

Ansiosamente folheando LPs, analisando suas capas amassadas através de sua íris cor de mel e retirando-os da embalagem numa urgência grave e serena, parecia aflita para deixar logo aquele lugar agradável.

Num sobressalto irônico, vi a “Bruxa Má do Oeste” fora de Oz, vívida e onipresente bem à minha frente!

Seus olhos, iluminavam, como faróis, os planos verticais que as pilhas de discos vertiam naturalmente.

E ela flutuava, insegura, impávida e hermética entre os títulos fragilmente selecionados numa desordem clara e objetiva.

Dona de si e em dúvida; pairando e caminhando entre as caixas de discos; finalizando sua visita, comprou um toca discos!

Que Aiwa! Meus óculos embaçaram!

Sob ressaca, me aproximei...

Havia um LP do Belchior sobre “bethânias” e “buarques” ao seu lado.

IX

Oi, o Belchior é demais! Aliás, fui num show dele, anos atrás.

Olha só essa foto com ele no camarim!

Rolando meu “Instagram” mostrei a imagem; descobrindo que naquela noite haveria um show gratuito na praça central.

Olha isso... Eu e ele abraçados e sorrindo, após o show.

E ainda me autografou o encarte do CD, numa fácil gentileza.

Estava simpático naquela noite. Dei sorte em seu camarim!

E hoje à noite, você vai no show do Zeca Baleiro?

Retorcendo o nariz, ela me disse:

Sim, vou sim. E tomara que chova!

Então, durante o show, depois da chuva; pude vê-la gritando, ao longe, com seu braço esquerdo elevado:

“Ele não! Ele não! Ele não!”

Enquanto isso, as eleições se aproximavam e nos distanciavam ainda mais.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 19/05/2017
Reeditado em 24/06/2020
Código do texto: T6003859
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