Pássaro engaiolado

Sentia-se engaiolada pelas amarras da reverência, modelada pela norma de viver. Seus dias eram cárceres. Um dia, se olhou no espelho e percebeu que as penas das suas asas estavam caindo. Tudo que se percebe inútil, vai-se. Mas a vida se refaz se olhamos para ela. Um passo, lado à outra direção.

Quando finalmente saiu da prisão que se debatia em sua alma, o reflexo projetado no espelho, era a aura de um pássaro com asas encolhidas pela dor. A primeira vista, a luz do sol era suave e agradável aos seus novos penugens. No começo abria as asas timidamente apenas para se aquecer. Depois de um certo tempo, percebeu que as penas ja exibiam um brilho comedido. Era o sinal que a vida ainda estava lhe atribuindo o sentido de ser quem ela era. O riso estava surgindo restaurado, branco, espontâneo e luminoso, assim como as ondas dos seus cabelos, que se mostravam fugazes, ao aparecerem mais leves e soltos, cintilando por entre os raios do sol. Era a vida dizendo que em tudo há a possibilidade de retorno da beleza.

Numa madrugada dessas, ouviu o canto de um pássaro noturno que gorgeava um sentimento perdido mata a dentro. Abriu a janela. O cheiro da noite também lhe atraira. O som daquele canto se afastava...

Movida por um desejo enorme de fugir, subiu à janela, ergueu as asas e pulou. No inicio as asas pareciam entravadas, mas nao demorou sentir o vento bater contra elas. De um lugar profundo dentro de si, encontrou tamanha força, cuja memória nunca havia registrado tal experiência.

Estava voando. Vorazmente.

A visão sobre as coisas em panorama, não podia ser mais inusitada que aquele galho flutuante sobre o lago, onde pousado estava o pássaro cantante responsável pela hipnose que a fizera voar. Descobriu naquele híbrido encantamento que também era pássaro. Tentou por diversas vezes se aproximar. Arriscou um rasante. Sem sucesso. Estava movida por uma dose de desespero e deslumbramento, ambos experimentados ao mesmo tempo. Muito embora o pouso ainda não tenha sido possível fazer. Eis que um dado momento cansara... Voou até a exaustão. Descendo rumo as gramíneas. Caindo sobre as folhas esparramadas pela mata, sem precisar o destino. No princípio não sentiu dor. Respirou devagar e quando pode erguer a cabeça, percebeu que seu peito estava duplamente ferido. Na alma, na carne, literalmente. O pássaro cantante sequer a havia notado. O som do canto silenciou. Suas feridas fizeram-na entender que a recíproca, as vezes, não acontece. Aprendeu que mudar é inerente a todos, voar era possível, amar também, mas aprender outras coisas ainda estava na lista entre tantos outros verbos.

Dos olhos marejados e flamejantes, rolaram lágrimas. Um suspiro... ergueu a cabeça para as nuvens que surgiam com a manhã... Curiosamente entendeu que o voo em busca do canto a fizera prisioneira novamente. Perguntou a si mesma por que a liberdade é intrinsecamente abstrata?

Nao ouviu voz alguma. Na intensa ânsia do dia que estava nascendo, sentiu o coração pulsar. Sorriu. A vida segue. Ela era mais.

Rita Vilas Boas