Abraços

Desde que consigo me lembrar, tenho sido acompanhado por algo que eu chamaria de um amigo – ou amiga. Não sei se há outra palavra mais adequada para descrevê-lo – ou descrevê-la. A falta que faz o gênero neutro para que eu possa me referir a esses seres propositadamente incertos e desconhecidos. A questão é que o que me acompanha não tem mesmo uma forma, não tem uma face. Ou, se tem, nunca me a mostrou. Por mais que me acompanhe há muito tempo, nunca trocamos uma palavra. Também nunca trocamos olhares, até onde eu sei. Diante de todas essas informações – ou falta delas – é inevitável que se questione como eu sei da existência desse ser que me acompanha. Tenho ciência de que eu mesmo não confiaria caso não tivesse experienciado por mim mesmo. Apesar de não ter tantas coisas – face, voz, forma – sei que tem, ao menos, uma coisa: um ótimo gosto! Coincidentemente, bem semelhante ao meu. A certeza da sua companhia se dá pelo fato de eu ser constantemente abraçado ao longo do dia. Explico, na ocasião de não ter sido compreendido. Seu abraço acontece sempre que é aprazido por qualquer estímulo – táctil, visual, olfativo, auditivo – que me aflige. A escolha do verbo “afligir” pode parecer errônea mas dá-se por um motivo bastante lógico. Corto brevemente a explicação anterior para iniciar outra que mostra-se mais urgente. Tenho a convicção de que sempre que experienciamos um prazer grande o suficiente, uma fração de nós é destruída, morta. Talvez não seja à toa que exista a expressão francesa “petite mort”. Bom, continuando. Seu abraço é breve, muito breve, mas sempre seguido de um arrepio como se, no que me soltasse, me puxasse; como se tentasse me absorver. Como se, quando enfiamos as mãos juntas dentro d’água e as afastamos rapida e subitamente, fosse criado um vácuo que quisesse ser preenchido. O arrepio varia de intensidade e duração de acordo com a intensidade e duração de seu abraço. Pode, inclusive, ocorrer várias vezes seguidas, caso o estímulo seja suficientemente deleitoso. Como se seus braços fossem poderosos ímãs que me atraem; como se fossem carregados de uma estática forte que me envolve. Como se fosse um suspiro leve ao pé do ouvido; como se fosse uma brisa fria numa tarde quente. Os estímulos podem ser inúmeros. Podem ter as mais inesperadas origens. O arrastar da ponta de uma folha seca pelo braço; o escorrer da água morna pelas costas; o acariciar dos dedos dela pelos cabelos. O avistar de uma árvore adornada de vinhas e musgos; o encontrar azul do céu com o mar; o cintilar de estrelas ao redor da lua. O dançar da canela em pó sobre tiras de maçã recém cozidas; o pingar do café numa manhã ociosa; o infundir de folhas de hortelã numa caneca de água quente. O cantar dos pássaros na alvorada; o ninar da chuva numa noite silenciosa; o apreciar de uma música profunda e favorita. Confesso que o abraço que esse último estímulo ocasiona me é bastante querido, já que o provo quase que diariamente. Agora, há também abraços bastante pecualiares que eu, mesmo não os recebendo com tanta frequência e facilidade, considero dignos de menção. Talvez, pelo fato de não me serem tão facilmente experienciáveis, se tornem os abraços mais intensos e súbitos. São estímulos que parecem existir para o único próposito de fazer aqueles braços me envolverem num abraço tão aconchegantemente vazio. Sem mais enrolação, são esses: questionamentos e iluminações. Opostos e complementares, esses estímulos sem dúvida trazem abraços incomparáveis. O questionar sem pretensão de resposta – ou, além disso, o questionar sem a possibilidade de obtenção de resposta; o supor de situações que nunca se realizariam; o imaginar de ideias completamente absurdas e impossíveis. Mesmo sabendo que, em qualquer situação, cada abraço é único, o provocado por esse último me dá uma certa sensação de onipotência, sendo minha imaginação tão poderosa quanto qualquer deus criador de qualquer mitologia. O compreender de um poema complexo e criativo; o tecer de teias entre assuntos aparentemente desconectados um do outro; o esforçar-se para tentar, sem sucesso, conceber a extensão do universo ou a de um simples átomo. Além do arrepio característico dos abraços no geral, acredito que esses últimos ainda me ponham num estado de êxtase breve como a milésima parte de um segundo – mas que, às vezes, parece uma eternidade. Encerro sugerindo apenas que passem a atentar cada vez mais a tais abraços recebidos durante os dias; e que os aproveitem e os sintam em sua completude.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 29/09/2017
Reeditado em 19/08/2019
Código do texto: T6128558
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