revisita

Há dois anos eu decidi abandonar seu continente e seguir na incompletude de um corpo preenchido por fissuras e buracos. Achei que precisava recuperar uma luz que outrora tive. Parecia justo. E então, eu olhei no fundo dos teus olhos e disse que não conseguia mais suportar o peso do amor. Os recursos simbólicos já não se sustentavam no vazio. Levavam muito de mim.

Você era minha reação estética, minha catarse. Eu me sentia conectada com as estações, com os noticiários, com as montanhas, e com aquela borboleta que me encantou no meio de uma tarde qualquer. Eu me encantava com a vida cotidiana, porque te amar transformava tudo em arte.

Mas eu bati a porta do seu carro naquele dia, depois de chorar uma vida apoiada no seu pescoço. Com aquele casaco azul e essa mesma calça de flores. E desde então, meu espírito se encolheu e eu não enxerguei mais nada de divino no mundo. Com você, até o silêncio era sagrado.

O silêncio. Era ele quem me dava apoio lírico, e defronte às incertezas do nosso universo sempre suspenso, eu inventava o que queria. Apesar do que parece, te amando eu me sentia forte, (é necessário muita coragem pra se mostrar tão fraca diante de alguém). E também me sentia sempre cheia, transbordante, a ponto de implodir. Pois tudo que eu sentia eu gritava pra dentro. Nunca, nunca pra fora. Anos e anos colocando o coração numa gaiola. Quietinho.

Transformei o amor em poesia pra não enlouquecer e pra não desistir. Era meu ato heróico: continuar te amando. A poesia era meu amparo e sua cúmplice. Despejando nas palavras, eu não precisava me derramar em você. Meu amor era incômodo. Pesava demais.

Depois que fui embora, eu senti falta das palavras. E sem o amor, (que eu expulsei) sigo encarando páginas em branco. Sem o amor, nada consegue transpassar minhas fissuras e buracos. Sem ele, as letras não me comovem e eu não me esforço pra que elas se ordenem, alinhadas, diante dos meus dedos que já não tremem e dos meus olhos que já não choram.

Hoje eu revi os teus, que já foram vítimas de tantos versos e simbolismos. Que já puderam enxergar tão profundo mas preferiram sempre observar os arredores. Sempre tão secos, mas guardando as lágrimas do mundo. Revisitei o lugar onde reside boa parte da minha história inventada. E a poesia me deu oi. Ela e a coleção de girafas e elefantes da prateleira. Ao lado daquele espelho que eu sempre me encarei, perdida e acuada. Hoje eu revisitei o continente que você fez em mim. Mas só por uns instantes. As letras já estão sumindo. Porque agora as páginas são todas em branco.

(Assim eu também não consigo escrever a última nota de adeus.)

Keuri Caroline
Enviado por Keuri Caroline em 26/10/2017
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