Estou apagando você

De pouco em pouco, eu sinto que eu vou te apagando: uma vírgula ali, uma reticências acolá, um "eu te amo" lá na página cinquenta, a assinatura nessa carta de amor que eu não te enviei... Parece-me que até o et cætera que fiz pra nós já sofre um pouco com o atrito do plástico com o papel.

É, eu até poderia tê-lo escrito à tinta. Mas será que as canetas azuis - que hoje valem poucos trocados nas papelarias dos bairros - teriam o condão de mantê-la aqui pela eternidade? Creio eu que não, meu bem.

Deixo eu que siga. Nosso livro chegou ao fim, enfim. O colofão já acabou. Os agradecimentos também vêm se esgotando. Eu mesmo já não os tenho feito com tamanha frequência.

Sobra-me, nesta capa de fundo da vida, dizer-te que, vira e mexe, teu corpo vem manchar o meu e o teu toque vem me abrir as feridas e o teu beijo me corroer a sobriedade, como de costume.

Sobra-me saber que, mesmo que me pareça loucura, aqui na parte final dos agradecimentos dessa - nossa - obra, ainda sinto-me bem quando o acaso me traz você: no caminho de ida e volta do trabalho, nas velhas músicas que não tocam mais nos nossos mesmos velhos bares de outrora, no grito pelo teu nome que ainda faz do meu peito moradia.

Eu queria um último beijo nosso. Só para sentir todo aquele arrepio uma última vez. Dar aquele adeus que eu não dei. Rir a risada que eu deixei morrer em mim. Levar você pela eternidade uma última vez, ainda que a eternidade não nos tenha levado consigo.

É doído demais ter você assim, sem tê-la. Machuca-me, inclusive, ver que eu mesmo tenho seguido em frente - ouso dizer que já quase o faço com maestria - e que, agora, todo o amor jurado mantém-se em forma - seguindo as métricas das juras de amor -, mas não em objeto. Esvaziou-se, o amor. Esvaziei-me, também. Dele e de ti.

Como uma caneta sem tintas, agrido o papel na esperança de que me sobre algum rascunho de história para contar. Estou cru e seco. Como quem trocou passos com a morte - quase que numa ciranda de escárnio e maldizer - e escapou por deleite do destino. Eu vi a morte. Caminhamos, nós dois e ela, de mãos dadas. E agora, mesmo que biologicamente vivo, sinto como se já estivesse jazido.

Ainda lembro-me bem dos risos froxos que a vida botou em minha e em tua boca. Era doce a vida como um sonho. Daqueles que se sonham de olhos abertos que é para não ter chance da memória vir a falhar tão cedo. A memória? Não falhou. Nós é que falhamos. Ridiculamente, falhamos.

Hoje, nesse papel sem metafísicas, mora todo o amor que eu dei. Queria eu tê-lo queimado: o papel ou o amor. Qualquer um, só para que não sentisse que em mim ainda vive você.

No final, eu sigo uma rota sem rotas. Um caminho torto que eu, mais torto ainda, julguei por bem trilhar.

Beijei duas mil bocas. Sujei mil lençóis. Tudo, absolutamente tudo, em vão. Eu deixei de viver quando te vi partir.

Levo a vida naquela velha toada. Lembra? Aquela que você conheceu e achou por bem não entrar na dança.

Sigo te procurando em outros corpos, em outros copos.

De pouco em pouco, eu sinto que eu vou te apagando: uma vírgula ali, uma reticências acolá, o "eu te amo" que - banhado de porres e mesmo tendo querido falar mil vezes - eu engoli enquanto te escrevia mais esta carta de amor de outras tantas que jamais conhecerão os olhos teus.

Desculpe-me, meu ex-amor, pela falta que ainda não deixou de fazer por aqui.

um poeta da noite
Enviado por um poeta da noite em 28/08/2018
Reeditado em 04/09/2018
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