O Quadro

A vela acesa no canto do quarto lança sua luz tremeluzente, iluminando precariamente o quarto lúgubre. A parede revela um antigo quadro, lembrança palpável de um momento em que o casal foi feliz. O menor vislumbre daquela imagem aflorava a nostalgia de um mundo superado, fazendo sofrer aquela condenada à vida. E apesar do mal emanado daquelas linhas, removê-las daquela parede seria, para ela, arrancar de si própria a lembrança do período de paz e felicidade. Negar essa existência seria negar a si mesma, logo, seu sofrimento era como um pagamento pelo gozo de outrora.

E era ali, naquele canto oposto ao quadro, numa poltrona que possibilitava uma visão perfeita da tela maldita, que ela gastava a maior parte de seus dias que insistiam em sobrar. Ali ela passaria, a olhos desatentos, pelo cadáver que em seu íntimo desejava ser, traída apenas pelas lágrimas que incessantemente lhe regavam as faces.

O toque pútrido da morte falhava, dia após dia, em alcançar sua candidata a vítima, não pelo êxito dela em furtar-se, mas pelo aparente desinteresse revelado para com ela ou, simplesmente, por ser aprazível assistir a sua sina. Mas, apesar da espera interminável, ela não deixava de aprontar-se, a cada manhã, em suas vestes de luto, na esperança de, enfim, poder ser anfitriã de sua última e suprema convidada.

Viveu, assim, nutrindo-se somente da esperança de que findasse, até que, por fim, evoluiu de voluntária a morta para morta de fato... E encontrou de volta sua paz.