Para a menina do espelho
Para a menina do espelho
Hoje acordei com saudade das amoras
Na árvore da casa do vovô.
De brincar de pega-pega com meus primos
Me sujar na lama, quebrar o vidro da janela
E depois fazer cara de “não fui eu”.
Saudade de papai me buscar na escola
E de pedir mamãe pra remendar o uniforme.
Ah! Que falta me faz almoçar depressa
Pra não perder o ônibus...
(Se não Dona Leila não me deixava entrar)
As preocupações eram sempre limitadas:
Lições de matemática
Sessão da tarde
Sapato novo
Cd da legião
Cola da prova
Natal na fazenda
Tias apertadoras de bochecha
Meu Deus, ele passou e nem falou comigo...
Namoro de portão.
Hoje eu acordei com saudade das pipocas
Mastigadas entre risos e risadas
Intervalos de filmes, desenhos e novelas
Nos doces encontros juvenis lá em casa.
O tempo passa e as coisas mudam.
Os móveis se empoeiram num canto da sala
Vovô com mal de alzheimer e a gente ainda acha graça.
Mamãe nem pode mais costurar...
E o papai? Onde será que está?
A gente faz orkut, deixa a solidão um pouco mais organizada
Faz visita de médico pras tias
Bochechas já não são mais apertadas.
Natal na fazenda, cadê?
Hoje eu acordei com saudade de não pensar em nada.
Saudade da época em que o aluguel não atrasava
Nada de conta de luz
Nada de falta d’água,
Filho doente
Dor de dente
Nada versus nada!
Saudade do era meu e do que não era também.
Saudade do que se foi e sumiu
Saudade da menina do espelho, que nunca mais voltará
E hoje se tornou mulher, triste, desamparada
A olhar os anos irem, um por um
Sem saber o vem, sem saber o que virá.
Hoje eu acordei olhando uma completa estranha num espelho desbotado.
Com saudade da vida que se perdeu .
E o destino, ah, sereno enamorado!
Encara a menina de volta, sem meias palavras
Com sua eterna cara de “não fui eu”.