A Carne de Maria

Da idade nada sabiam:

Muitos diziam ser moça

Outros, que ainda menina.

Mas a todos enfeitiçava

Isso era bem verdade:

Naquelas terras distantes

A mocinha de ar infante

Era a alma daqueles que longe

Do glamour das grandes cidades

Perdidos estavam na vida

Esquecidos estavam no espaço.

Lá, aonde nada chegava

De encanto só mesmo havia

Num raio de muitas léguas

A doce criatura, o mistério

Que ninguém sabia a idade

A bela menina Maria.

Na meninice acanhada

Apesar de um pouco crescida

Dos homens era a vontade

E das crianças madrinha.

Das mulheres, era o medo

Amargura das sem-marido.

Maria, que não tinha idade

Ardia em segredos alheios

De sadismo, amor e carícia.

Indiferente aos sentimentos

Dos moradores vizinhos

Secretamente no peito

Somente às crianças amava

Com elas brincava e sorria.

Sentia dos homens asco

Das mulheres, se condoia.

E assim, nesse quase pecado

De nada entregar aos fracos

Vivia a doce Maria.

As mulheres casadas choravam

Por perceberem em seus maridos

O desejo brotar ardente

Ao olharem Maria.

Mesmo elas, por fim, acabavam

Por se render à doce rival:

Que sendo de tudo tão bela

Era a única jóia que tinham

Num lugar esquecido por Deus.

E nada tendo a ofertar

Aos homens davam o que tinham:

Um gesto, um carinho rude

Uma casa, o pão e os filhos.

Sabiam-se preteridas

Mas se conformavam no final

Pois a nenhum homem amava

A moça que não tinha idade.

Seus passos eram a dança

Alimentando os olhares vazios

Quando passeava na estrada

Com sua roupinha de chita.

Ninguém olhava os remendos

Do pano barato e encardido

Toda ela era encanto

Atrás da pobreza triste.

Fosse diamante bruto

Retido em pedra sem valia

Assim enxergavam Maria

Em seu manto rasgado.

Os cabelos negros ao vento...

Os pensamentos, onde será que estavam?

Nos campos em dia de chuva?

Nas flores iguais às da saia?

Em almas impuras da Terra

Ou em anjos que a protegiam?

Onde? Ninguém sabia.

Como tudo na vida e no conto

Um dia ela se enamorou.

Era um viajante sem rumo

Cansado de suas andanças

Que em sua cidade pousou.

Maria amou-o primeiro

Com força de quem nunca amou

Fez-se mulher errante

Esqueceu a meninice em flor

Com primitivos cosméticos

Perfumava-se às escondidas

Se pintava e se produzia

Como as rameiras sem valor.

Porém o amor almejado

Na imagem do homem vivido

Era justamente o contrário

Do que pensava Maria.

Fugia ele das festas

E das belezas pintadas à tinta.

A carne tão mal-amada

Da infame mulher da vida

Era motivo de escárnio

Do grande amor de Maria.

Assim, sem saber o porquê

A menina somente afastava

Aquele a quem perto queria.

As amarguradas da cidade

Já não invejavam Maria.

Viam-na com desprezo

E profunda satisfação

Pois seus homens não mais amavam

A pobre meninazinha

Que nem idade não tinha

E dantes era a emoção

Da cidadezinha esquecida.

Mas Maria não desistiu

De conquistar o seu amor

Tão breve e já tão visível

Afinal todos percebiam

A sua triste aflição:

Quando a noite caía gelada

Em meio à neblina pesada

Ia a menina aos pés

De quem, por piedade, sorria

De tal atitude em vão.

Maria voltava chorosa

Infeliz com a condição

De saber que não existia

Nesse mundo de vidas vazias

O que doesse mais do que um “não”.

Mais uma vez, no entanto

Mudando o rumo da história

O viajante embriagado

Numa lua entregou-se à Maria

Na estrebaria em que dormia

Sem dinheiro para um hotel.

Maria foi sua amante

Tudo o que tinha lhe deu

Permitiu que fosse mordida

Por julgar que seria só seu

O homem da boca vermelha

Com os dentes cravados na carne

Que ela havia ganhado de Deus.

Nua na luz da lua

Maria amou, foi mulher:

Dormiu, sem saber que o dia

Seria de dores frias

Para a doce alma menina

Que naquele momento morreu.

Antes de o sol nascer

Mas já sem lua no céu

O homem se levantou

E olhou ao seu redor.

Viu a moça deitada

Já sem tinta e sem pudor

Olhou o sangue na roupa

E então percebeu o feito:

Tirara do ventre menino

A virtude há muito guardada

Que deveria apenas ser dada

A quem fosse escolhido por Deus.

Confuso e arrependido

Aprumou-se em um minuto

Como se nada tivesse perdão.

Olhou suas mãos impuras

Cobertas do néctar das ninfas

Que se travestiam em dragão.

Deixou Maria dormindo

Tapou sua carne nua

Com os trapos que estavam no chão.

Chegou bem manso, de perto

Viu que ali não havia

Mulher da vida e sim menina

E encheu-se de compaixão.

Beijou-lhe a fronte tardia

Fez o sinal das cruzes

Sem saber se o merecia

Pediu em silêncio perdão

Rezou uma ave-maria

Pegou sua trouxa franzina

Deixou cair uma lágrima

E sumiu na escuridão.

Maria acordou sozinha

Seu rosto ainda sorria

Mas gelara o seu coração.

Esperou até de tardinha

Mas seu amor não voltou.

Chorou quando a noite caiu

E a primeira estrela pairava

Em seu céu de desilusão.

Viu que não era seu

O amor que tanto ansiava.

Levantou e se vestiu

Se penteou e lavou as mãos.

Saiu da estrebaria

Jogou-se ao relento da estrada

Já não era mais menina

E mulher não queria ser.

Calçou as sandálias baixas

Se perdeu na imensidão.

Andou muito, fez tudo

O que era possível fazer.

Brincou com as crianças na rua

Parou para descansar.

Pensou nas mulheres amantes

E nas estranhas formas de amar.

Chorou por sua mãe doente

Morta sem companhia.

Do pai nada sabia

E de nada viria a saber.

Pensou na idade que tinha

E que seria a última a ter.

Lembrou-se dos homens errantes

E sentiu uma dor íntima

Ao ver que um daqueles perdidos

Foi parte do seu destino

Sem intenção de ser.

Num salto saiu para o mato

Como um animal ferido:

Embrenhou-se floresta adentro

Subiu numa pedra bonita

Voou para o céu infinito.

E foi aí, nesse momento

Que a doce menina de Deus

Entregava-se à sua loucura

Expiava seus sofrimentos

No mundo que não era seu.

Foi um só grito no escuro

Uma lágrima e um sorriso

E num breve segundo

A menina afogou-se no rio.

Mas Maria não morreu.

Ela é um pouco de mim

Um pouco do que Deus me deu

Um pedaço da mulher vivida

E da mulher que não viveu.

Daquela que amou um dia

E da que ficou sozinha

Sem o amor que devia ser seu.

Maria é mulher da vida

Que se deita sem amar

E é também moça pura

Na mais inocente candura

Que ama, sem nunca deitar.

Maria é um pedacinho de todas

Que crêem, mesmo com dor.

Mas também é a mocinha

Sentida, com ódio na vida

Que nem acredita em amor.

Maria, enfim, está na rua

E é aquela que mora ao lado

A menina que passa na estrada

A mulher que senta na varanda

Pra falar do homem amado.

É mulher que ama os filhos

Mas sem filhos também é mulher.

É de todo lugar

Se enfeita com todas as cores

Usa perfume e se pinta

Ou usa vestido de chita

Cheio de estampa de flores.

Maria nunca chora

Ou chora demais até.

Se mata afogada num rio

Ou se afoga num rio de amor.

Se traveste em musa de poesia

Ou vive uma vida vazia

Mas Maria é toda mulher.

Que tem um pouco da essência

Da doce menina Maria

Que amou muito na vida

Mas morreu, sem nunca viver.

As mulheres todas da terra

Têm o amor de Maria

Sentem o sabor encantado

Dos sonhos da pobre menina

Também têm em seus corpos

Um pouco da dor de Maria

Guardam nos ventres sagrados

Sementes de outras Marias

Que virão ao mundo gerar

Outras tantas Marias

E serão na eternidade

O principal alicerce da vida

Pois toda a existência na Terra

Se deve ao firmamento

Do amor e do sofrimento

Na carne de muitas Marias.