Pessoas-conceito

Na indústria de automóveis existe um carro que, teoricamente, foge aos propósitos comerciais. Não são traçados para a linha de produção. São carros feitos para não serem vistos na rua, senão apenas em recortes, como traços de carros diferentes de uma mesma fabricante. Tem importância objetiva e, sobretudo, subjetiva nos seus apreciadores.

Não são versões finais e acabadas, mas apenas representam ideias, traços, cores, tamanhos, tipos ideais etc. Conseguem levar ao limite – pela beleza e, concomitantemente, pelo espanto – as características que um carro de determinada fábrica poderia ter. São, acima de tudo, carros de exibição, feitos para testarem o estabelecido e causarem emoções díspares nos adeptos do automobilismo. São chamados de carros-conceito.

Sem querer comparar gente e coisa, e esvaziando todo o sentido mercantil de um carro-conceito, sinto que também há pessoas que podemos atribuir a característica de pessoas-conceito. São pessoas que trazem ideias muito fortes ou rígidas, subversivas ou iconoclastas, idealizada ou utópicas, de como algo deveria ser (ou não-ser), ou em que deveria resultar.

Entretanto, como a vida é um rio, que corre no seu curso típico e programado, mas que também alarga e encolhe seus meandros, ou por vezes transborda, uma parte dela corre indiferente aos nossos planos ou desejos, escapando da integralidade do previsto, do que deveria ser. Sendo assim, as ideias dessas pessoas, por vezes (quase sempre), são de impossível realização – se consideradas tal como as idealizaram.

Isso quer dizer que essas pessoas são desnecessárias no mundo? De jeito nenhum. São elas que encorajam a transformação do mundo – para a proximidade do mais justo e melhor, mas também para o arbitrário e abusivo. São remédio ou veneno, a depender do convencimento, de si e do outro, de que são pessoas-conceito, e como tal devem ser consideradas.

Sendo pessoas-conceito, suas ideias, características, propostas, valores devem ser vistos como características-limites, não como aquilo que deve existir dogmaticamente no mundo. São importantes e imprescindíveis como influências, pois sendo e querendo ser versão acabada, mata tudo aquilo que faz o rio se alargar ou transbordar: a contestação em geral, a arte, em particular.

Essas pessoas devem continuar existindo. Entretanto, como os carros-conceito, são espantosos ou avançados para transitarem de forma harmônica e aderente no mundo. Aliás, se, como eles, fossem vistos de forma acabada no mundo, significa que não seriam mais conceitos, e, por isso, vazio de toda sua força de vanguarda e contestação.

Faço apologia ao pragmatismo? Pelo contrário. Não matemos a utopia. As pessoas-conceito são necessárias às reproduções e rupturas na vida. Como os carros-conceito, quero vê-las na rua, como características e traços de várias outras pessoas. Não como versão finalizada, mas como aquela força originária, que cada um carrega em si, atrás da orelha, de que não se fez o suficiente, e que poderia ser melhor!