O TEMPO

Chuva fina. Noite escura. Luzes acesas, aqui e ali... Fui subindo a ladeira pela calçada estreita, meio em ziguezague, olhando os faróis dos carros passando por mim... Quanto tempo fazia que eu não observava a chuva à noite? Não sei... E olha que já lá se vão muitos anos, creio eu.

Aspirei com prazer o tempo fresco e a brisa que se misturavam ao meu próprio perfume. Subitamente me dei conta dele... Não parecia ter envelhecido muito, mas seus cabelos estavam grisalhos e a face vincada... porém o sorriso muito claro ainda era o mesmo. Ele me chamava de menina, no mesmo tom daqueles tempos. E eu não entendia muito bem se estava acordada ou sonhando.

Finalmente cheguei lá em cima, me virei e olhei para o mundo por entre os pingos esparsos de chuva. A seguir, me sentei num banco de madeira e estendi confortavelmente as pernas... A chuva não me incomodava. Ele não quis sentar-se ali, disse não ter tempo... Ora, como pode o tempo não ter tempo? Rimos gostosamente por causa dessa contradição. Esse encontro inesperado depois de tanto tempo, numa época em que o calendário faz tudo recomeçar, (pouco depois do Ano Novo) me fazia falar alto.

Contei que voltava de uma visita na casa de gente amiga... Disse-lhe que quis sair furtivamente de lá para não perder esse momento. Queria comemorar a chegada da chuva, o sereno da noite. Ele então voltou-se para me ver melhor. Mais um passo e voltou a me olhar. Passou de leve a mão na minha cabeça, mas não disse nada. Parecia não ter a menor pressa. Tentei vê-lo através do meu espelho ao retocar o batom...Queria me sentir assim com a mesma idade de antes, quando era aquela estudante de violão. Outra vez aprenderia os acordes e musicaria minha vida. Inteira! Ele também.

Na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. “Ou quase”, pensei ao ouvir sua voz um tanto fraca... Todos estes anos se passaram como se fossem apenas alguns dias, ele disse. E era assim que eu pensava. E continuou falando. Você sempre usou óculos, me lembro, sempre gostou de escrever, de ler, de ouvir música... Engraçado, pensando nisso, tive há pouco a impressão de ter recuperado a juventude... Nessa hora ele riu baixinho e sua voz ficou mais forte quando (re)começou a falar ...Contou do meu próprio tempo tão atormentado. (Como ele sabia?). Falou da minha prosa e dos meus versos... Das minhas idas e vindas...

Nessa hora, inclinou-se um pouco para ler a placa da minha rua. Depois, empertigou-se feito um gato errante, caminhante, daqueles que fogem e acabam voltando aos mesmos lugares. Tinha então parado de chover. Apontei-lhe a minha casinha amarela e nos despedimos rapidamente. Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou serena, desanuviada, mas ele devia estar sabendo e, assim, eu não precisava mais falar. Entregou-me um pacote de fotografias e novamente olhou bem nos meus olhos como se fosse meu espelho.

Depois saiu caminhando devagarinho. Quando abri a porta da casa tive a vaga impressão de que estava abrindo uma outra porta. Uma porta que eu nem sabia direito onde ia dar....Fiquei olhando para a chave na palma da minha mão. Só então girei-a na fechadura e entrei.

Lá fora, na rua, ele ainda parecia caminhar bem devagar... As luzes se acenderam e me fizeram pensar no sorriso dele, (ou seria o meu?)... Naquele encontro luminoso. Fechei a porta e fiquei ouvindo minha própria voz meio desafinada cantarolando... Me lembrando desse meu encontro com ele: o tempo!