A casa

A casa

No princípio a casa era o lugar de brincar com os irmãos, fazer cozinhado de boneca, passar horas olhando a chuva pela janela sem medo do trovão, abrigo seguro livre do perigo, encontro da família na hora do almoço...

Tenho saudade do colo da mãe, quando acordava assombrada no meio da noite, do barulho do calçado quando o pai chegava do trabalho e fazia todo mundo se movimentar: mamãe se apressava servir meu pai; e nós, principalmente os três mais velhos, corríamos para aproveitar o pouco tempo que passava em casa para contar as travessuras do dia. Meu pai não era de muito afago, mas nos presenteava pelo menos uma vez ao ano com uma viagem de jipe para uma cidadezinha do interior de Pernambuco onde moravam nossos avós paternos.

A casa era o lugar de ouvir o barulho da máquina de costura costurando a roupa das festas juninas ou natalinas. Adorava ir para o comércio com minha mãe escolher tecidos para minha roupa e dos meus irmãos. Para mim, a beleza dos tecidos estava nos detalhes de cor vermelha, ou encarnada, como se costumava dizer.

Certa manhã, ouvi um barulho de calçados diferentes, pulei da cama num só impulso. Senti que algo não estava bem. Meu pai entrou apressado, não havia dormido em casa nessa noite, parecia transtornado, e foi gritando: - Maria! Maria era uma prima nossa que ajudava mamãe a cuidar da casa. A mesma respondeu: - Senhor ! Continuou meu pai: - Junte toda minha roupa, coloque numa sacola que estou saindo de casa.

A casa transformou-se no lugar de desespero. Minha mãe a chorar perguntava a razão, e meu pai não lhe dava ouvidos. Nós, os seis filhos, chorávamos sem entender nada do que estava acontecendo, mas com a clareza que não era coisa boa. Nunca havia visto minha mãe chorar.

Nosso choro, misturado ao choro e indignação de minha mãe, a tristeza e obediência de minha prima transformou-se num verdadeiro desadoro. A casa desmoronava.

Daquele dia em diante o vermelho perdeu a beleza e a casa passou a ser o lugar do lamento, do medo, da solidão, da tristeza, da incerteza, do esconderijo das más línguas, do refúgio dos olhares de desprezo e da indiferença da vizinhança. A casa da família passou a ser a casa da mulher separada, sem marido; casa sem dono.

As circunstâncias nos expulsa da casa, fui para a casa de um tio, o quarto do fundo da oficina mecânica do meu pai, a casa da madrasta e o colégio religioso, então percebi, já não havia mais casa, apenas tetos, abrigos, onde estudava, trabalhava, comia e dormia, sem colo, aconchego e a beleza do encarnado.

A esperança renasce, o sonho refloresce, e o sentido da casa brota da semente seca. A casa é lugar de carícias, gerar vida, compartilhar desejos, sonhos, sentimentos. Novamente é lugar de brincar, de sorrir, de cores, o encarnado volta a embelezar.

A casa é lugar de criar o novo, de acalentar as crianças, de acolhê-las na cama nas noites de inverno, de contar e ouvir histórias, de celebração de vida, de família.

O esforço para preservar a casa não foi suficiente, certo dia me dei conta que a casa não existia, era ilusória, nem os tijolos que resultavam do suor do trabalho eram reais, pois o desamor, a incompreensão e os atos inconseqüentes destruíram o lugar das carícias, da geração de vida, do compartilhamento de desejos, de sonhos e sentimentos. As crianças cresceram, as brincadeiras cessaram. E a casa? Que casa? A casa novamente desmoronou.

O que restou? Restou o lugar da solidão, do vazio, da separação, do ressentimento, do medo e do cheiro da bebida impregnado no olfato viciado, de tantos anos apenas isso ter cheirado.

Em meio a tantos desencantos, onde tudo é cinza, renasce mais uma vez a esperança de dar novo sentido à casa. Ainda existem sementes em meio às cinzas que podem gerar vida, alegria, cores e harmonia na casa.

As sementes brotaram novamente, hoje a casa é lugar de família, de compartilhamento de vida, trabalho, alegrias e conquistas. A casa é lugar de descanso, autenticidade e liberdade. Não há cheiro de bebida, o olfato foi desintoxicado. A casa é lugar de gente de nosso sangue, de outros sangues, lugar de acolhimento aos que chegam e desejo de paz aos que partem.

A casa é fruto da coragem de renascer das cinzas, lugar conquistado, lugar defendido, pois é na casa, por excelência, que compartilho amor materno, canto, sonho, choro, sorriu, opino, reclamo, critico, aprendo a respeitar e viver com menos censura.

Ao anoitecer, quando saio do trabalho, a qualquer hora do dia quando retorno da viagem, da visita, da festa ou do encontro com o bem amado, a casa me acolhe.

Gorete Amorim