Ainda bem pequenos descobrimos a morte. Difícil é compreendê-la. Eu pelo menos não entendi quando vi a d. Lica, minha vizinha, que eu amava muito - aquela senhora de cabelos grisalhos, que me tratava de uma maneira tão especial - dentro de um caixão. Eu tinha seis anos. Eu quis ir ao cemitério para ver o que aconteceria com ela. Minha mãe não gostou da idéia e tentou me convencer de que seria bom eu guardar dela o que havíamos juntas vivido. Mas, eu preferi ir. Aliás, eu insisti muito. Não deixando escolha para os meus pais. Já chorei bastante em minha vida; já senti muitas dores fortes, dessas que a alma fica murcha, recolhida, ferida. Mas, quando me lembro do meu primeiro sofrimento, é a d. Lica e a nossa despedida involuntária, que me vem à mente.

Ela era uma senhora bondosa e muito bonita. Quando a minha mãe brigava comigo eu corria para ela que me "socorria".

Quando eu era pequena eu era muito arteira, eu fazia coisas das quais eu mesma não compreendia. Coisas que não eram consideradas boas de serem feitas e ficava de castigo por fazê-las. Para mim, não pareciam ruins. Ao contrário, elas me faziam sentir prazer.

Lembro-me de uma vez que - minha mãe lavava as roupas num tanque, que ficava debaixo de uma parreira de uvas verdes e de outras uvas de cor roxas. Minha mãe era muito cuidadosa e suas roupas brancas eram impecavelmente brancas. Neste dia de minha lembrança, minha mãe havia estendido os lençóis brancos na grama de nosso jardim para quarar. Eu tinha, naquela época, 4 anos. Olhando aquele lindo "campo" branco de lençóis guarando todo  iluminado pelo sol, eu fiquei fascinada e resolvi caminhar sobre eles. Foi tão gostoso brincar sobre os lençóis molhados e brilhantemente brancos. Obviamente, quando a minha mãe viu aquilo ficou muito brava comigo, me colocando de castigo. Fui, então, proibida de brincar com as minhas bonecas durante algum tempo. Eu chorei muito! Senti-me muito magoada, pois não compreendia o que havia feito de tão errado para receber tal punição. Aos quatro anos de idade eu não poderia pensar que estaria dobrando o trabalho de minha mãe, eu somente havia pensado naquele maravilhoso campo branco refletido pela luz do sol, que era tão lindo e me convidava para pisar e brincar sobre ele. Naquela época eu ainda não sabia, mas logo, fui descobrindo as conseqüências dos meus atos. E também, como uma coisa que é boa para mim, pode implicar em algo desagradável para a outra pessoa. A dona Lica me compreendia muito bem. Ela entendeu - não sei se porque não havia sido ela quem lavou aqueles lençóis enormes - que eu somente queria me sentir feliz, sem a menor intenção de causar aborrecimentos.

A dona Lica viu até poesia na minha brincadeira e começou a se lembrar do tempo em que ela era uma menina e de se lembrar das coisas das quais gostava de fazer e pelas quais era punida pelos seus pais que também não compreendiam, que na verdade, a menina Lica estava somente fazendo suas pequenas grandes descobertas. Assim, como eu também tentava fazer as minhas descobertas.

Esse balanço entre a seriedade de minha mãe e a suavidade da minha vizinha tão sábia, ia construindo a menina da minha infância. 

E quando a dona Lica morreu eu me desesperei. Senti a escuridão que à partir daquele instante ficou em um dos lados da construção de mim menina. Era também o meu primeiro contato com a morte. Acompanhei a ida, para o enterro, de dentro do rabecão. Fui ao lado de seu caixão chorando como um bezerrinho desmamado. Sofrendo tudo o que podia sofrer.  Quando vi seu caixão descendo os palmos de terra, eu não me conformei. Achei a morte algo medonho e feio. A morte recebia as pessoas de uma maneira estranha e isolada. Era algo muito difícil para a compreensão de uma menininha desde que a dona Lica era tão boa, não me parecia na época que ela merecesse ser enterrada dentro de um caixão. Parecia-me que a dona Lica estava sendo jogada fora... Como eu poderia entender que ir para o céu, ao encontro do paraíso, primeiro tinha de ser enterrado? Não se poderia chegar ao céu de uma outra maneira? Por que será que era preciso estar tudo desligado no ser, para se ir para o céu? A menina de mim achou muito estranho que antes de ir para o céu era preciso paralisar  os movimentos do corpo e os pensamentos. E o coração que era onde as pessoas guardavam o amor, o que era feito dele, por que tinha que ser paralisado antes do encontro com Deus? Será que Deus gostava das pessoas sem coração? Enfim. Era preciso deixar de ser quem se era, para ir para o céu. Na minha cabecinha de menina, tudo parecia irreal e complicado. Nada parecia fazer sentido. 

Desde pequena eu buscava razões e sentido nas coisas. Até hoje, eu me lembro dos meus pensamentos de menina.

Lembro-me também que a minha mãe havia me consolado dizendo que a  alma da dona Lica já estava no céu e que ali ficaria seu corpo, pois no céu não se precisaria do corpo. Lá, no céu, era um lugar que somente o espírito ia viver. Eu fiquei ainda mais confusa pensando como as pessoas seriam identificadas lá no céu? Eu achava tão lindos os cabelos e o sorriso da dona Lica. Naquele momento eu não senti vontade de ir para o céu, jamais. Um lugar onde a alma não mais refletiria no corpo, não me parecia um bom lugar para se estar.

Eu fui crescendo e tentando buscar respostas para 'essa coisa' de ter que se despedir da vida sem se saber quando e sem se saber o porquê, e  de ter que ir para um lugar aonde não se tem certeza de que vai gostar  de se estar nele e  muito menos de não saber o que se poderia fazer neste lugar de tão especial, que não se pode ficar fazendo aqui mesmo na vida?

Ao longo de minha vida, estive participando de muitas religiões e estudando sobre elas, para tentar compreender um pouco melhor as coisas que eu nunca consegui entender. Todas as religiões são lindas! Mas, não me adequei a nenhuma delas. Porém, continuei estudando à respeito, para compreender a visão e o entendimento de cada um sobre a terra e sobre o céu; sobre o "se viver" e sobre o "se morrer".

E assim, eu fui crescendo sem muito saber à respeito de nada desses assuntos tão intensos e tão profundos, onde cada um vai buscando para si as suas próprias respostas e com elas vivendo e nelas acreditando. 

Somos todos vencedores porque mesmo sem sabermos de nada, vamos enfeitando a vida e nos apaixonando por ela. E também, porque vamos construindo a idéia de algo bonito e mágico para depois de sermos enterrados como algo que não tem mais utilidade na vida.

Ser humano é ser crente. Ser humano é ser crédulo! Ser humano é não deixar a "peteca" cair. E no caso de cair a peteca é juntá-la novamente e continuar a brincar. A vida é uma linda brincadeira. Eu acho!