Italiano, Marceneiro, Imigrante

O vinho tinto acompanhou todas as refeições principais de sua vida, e, depois do dedinho de cachaça tomada num gole só. No jantar, parte do vinho ia para o prato de sopa. Uma tigela que parecia enorme lhe era servida cheia de folhas verdes com azeite, vinagre e sal, e invariavelmente, muitos rabanetes.

Ele era muito lindo. Alto, olhos azuis belíssimos, e mesmo idoso, tinha um porte atlético. Gentil, amiúde, respeitosamente saudava as senhoras, beijando lhes as mãos. Fascinante foi saber pelas conversas das tias, que ele se apaixonou pela vovó assim que a viu, e que sensível, e bem educado, esperou o tempo dela, dois meses, para consumar o casamento.

A vovó, brasileira, filha de italianos, meiga e carinhosa e muito prendada, era de uma humildade cativante. Tiveram 8 filhos vivos. Naquela imensa mesa onde nos reuníamos para todos os almoços de domingo, ao pegar meu garfo caído no chão, vi com alegria, o pezinho do vovô acariciando o pezinho da avó.

De ordinário, distinguia no olhar de meu avô uma tristeza inconsolável e no seu semblante, um sorriso que não se abria. Teria sido a travessia dramática daquele mês em que deixando sua terra natal permaneceu num navio em alto mar, até chegar ao desconhecido? Seriam as situações muitíssimo difíceis de sobrevivência pelas quais passou lá e cá? Ou foram alguns contratos de serviço baseados na palavra e que receberam calote de compradores deixando-o sem condições de alimentar sua família? Teria sido a morte de um dos filhos aos 33 anos? Seria a saudade de sua terra, para a qual voltou a passeio três vezes?

De minha memória havia nele uma “mágoa de imigrante”. Estava no meio da terceira infância, num dia qualquer, e me olhando fixamente ele iniciou uma fala (talvez no dialeto?) e parecia aflito por eu repetir que não o compreendia. Pedi ajuda para entendê-lo, levei bronca “para não incomodá-lo”, até que minha tia carinhosamente abraçou-o, acariciou o rosto dele, e lhe disse com muito afeto, palavras de bem estar. À mim, ela explicou que ele às vezes se lembrava de coisas antigas e que ele ficaria bem. Como não era um avô que pegava no colo, que levava para os jardins, esse fato teria sido a oportunidade de nos tornarmos próximos e passei o dia inteiro com isso na mente.

Costumo pensar que a sensação de rejeição pela própria pátria está no emigrante, enquanto que, o medo e a insegurança os tomam quando chegam ao novo país. No caso, o governo italiano estimulou a saída das pessoas como solução para a fome e a miséria, e no Brasil, os italianos eram esperados para substituir mão de obra de pessoas que escravizaram. A força para ir em frente era a da sobrevivência.

No jogo de 5 de julho de 1982 da Copa do Mundo, no qual a Itália venceu o Brasil, senti meu avô muito constrangido. Ele permaneceu de pé, demorando-se a ir para o sofá, e só repetia que qualquer um que ganhasse estaria bom. Itália ganhou, ele não deu nem meio sorriso. Agradeceu-nos e saiu tão logo o árbitro deu o apito final. Achei um dia de clima difícil, não somente porque o Brasil perdeu.

Ao contrário das demais, a língua italiana é a língua de um poeta, Dante Alighieri, que a propôs com base na língua falada em Florença de 1300, mas também de seus legítimos sucessores, Petrarca e Boccacio. É sonora e musical. Como é bela! Não me atrevi a pedir que vovô me ensinasse o italiano oficial que ele dominava. Uma razão é porque em minha adolescência nos vimos pouco, e quase nada quando saí da cidade aos 17 anos para estudar. No meu segundo ano de faculdade, numa aula pratica de Anatomia fui chamada pelo professor que me retirou da sala e me deu solene e respeitoso a noticia do falecimento dele, liberando-me imediatamente. Em algum momento antes disso tudo, ele estava adoentado e acamado na casa de meus pais. Tentando animá-lo, peguei um texto em italiano e sorrindo anunciei que iria brindá-lo com minha leitura. Com coragem comecei a ler, mas me pareceu vê-lo deixar escapar a dor pelos olhos. Conforme errava ele repetia as palavras corrigindo-me, mas num certo momento as lágrimas brotaram abundantes, e então percebi que era hora de parar. Enxuguei lhe as lágrimas e ele fechou os olhos. Foi nossa última cena juntos.

Quis saber uma vez sobre a ópera favorita dele. Ele prontamente me disse: “I Pagliacci”. Nunca tinha ouvido, pedi informação ao meu pai, e soube algo da história. A ópera “Os Palhaços” foi composta por Ruggero Leoncavallo e estreou em Milão, 1892. Ele foi um dos expoentes do verismo italiano, do Alto Romantismo. A ópera tem um prólogo e nele, um ator vem alertar o público que “o que eles vão ver não será uma série de palhaçadas, e sim, coisas da própria vida.” E completa: “Mas, não se assustem, eles apenas fingem o verdadeiro.”

Eu sinto que meu avô teve duas mortes. Uma quando subiu num navio para longe de sua terra, e a outra, 8 anos após a morte da vovó. Para mim que andei comovida por ele, considero que a vida dele foi de lutas imensas e incontestáveis como trabalhador.

Concluído essas divagações sobre o vovô, me deparo pela primeira vez com uma foto de 1920. Num barracão aberto, muito simples, o chão coberto de serragem, sentado na mesa alta de trabalho, ele abraça o seu primeiro filhinho, a vovó por perto, e espalhados, mais seis homens colaboradores. A fotografia antiga, essa gente de boina, me levam a imaginar no tempo o que marcou um jovem vindo de Pádua, marceneiro caprichoso, que entalhava artisticamente com o formão, muitas peças, as mais lindas para mim, sendo as cadeirinhas de balanço para as netas e netos. Examino cuidadosamente essa foto antiga e chama a atenção, que naquele momento, alguma esperança parece tê-lo tocado, e lá está, um sorriso rasgado... um sorriso de meu avô.

Nonno, ti faccio onore.

No azul dos seus olhos, meu avô, eu passei a ver o alto mar, solitário e misterioso em sua imensa superfície.

Falecimento:4/4/1976