Porões

Lavei meu quintal pra receber a tempestade que se aproximava além do céu azul de outono. Quem poderia entender a minha insana necessidade de remover desde aquele monte de folhas secas acumuladas com a terra escura dos meses até a poeira fina dos beirais? Ninguém compreenderia minha felicidade de ver o trabalho concluído e a água da chuva correndo livre pelas frestas do cimento. Então, levantei as mãos para o céu e agradeci a benção desse momento sagrado, sentindo a chuva escorrendo pelo corpo. Ainda falta muita sujeira pra me lavar e deixar a chuva correr só agua pelas frestas de mim. O trabalho efetivamente começou. Adentrei os porões escuros, removi muitas teias. Alguns baús ainda estão trancados. O cheiro de mofo ainda é insuportável. Difícil respirar nessa escuridão. Aos poucos, sem pressa alguma, vou trazendo algumas velas, varrendo o chão repleto de areia dos mares, removendo a poeira das estantes. Quando o porão estiver limpo, cheiroso, iluminado, só então vou buscar as chaves e destrancar os baús. Deixar os fantasmas escaparem e dominarem a atmosfera. Admirá-los, agradecê-los e abrir as janelas para que voem livremente. Vou encontrar aquelas fotos que não queria ver nunca mais. Sentir cada uma vibrando no meu coração, e depois rasgá-las. Vou descobrir as roupas gastas pelo tempo, o sangue, o suór, a carne, a dor, o medo, a culpa e deixar que a raiva me inunde para escorrer as lágrimas do choro que engoli e ainda não vomitei. Sim. Estou pronta. Encontrei exatamente o lugar onde um dia deixei o leão que sempre cavalguei. Sinto no ventre a nova vida brotar. Minha força feminina vem crescendo, hora de me renascer!

*Si*

Simone Ferreira
Enviado por Simone Ferreira em 09/04/2024
Código do texto: T8038128
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