A música passa ao largo

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Com um lento menear da cabeça, tenta dissipar as lembranças que a perseguiam nessa roda incessante. Senta-se novamente. Suas mãos doloridas pelo esforço quedam-se sobre o teclado em mero repouso. Fecham-se as pálpebras em plena entrega... O poema não veio, os versos fugiram do papel, a rima perdeu-se no ritmo galopante da música que submetia sua vontade de escrever ao absoluto caos. A música arrebatava suas idéias e as varria para um passado remoto.

Teve que parar com um longo suspiro cheio de enfado. Nenhuma linha, nem uma linha sequer!

Susteve outro suspiro. Queria aprofundar esse vínculo com as letrinhas que bailavam pela sua tela. Queria dizer dessa vontade de gritar barbaridades. De escrever sobre esses eternos gostares que se espalhavam profusos em sua vida. Mas... naquele instante andava na contramão, envolta em puro descompasso. As mãos pareciam ter atitudes próprias, desafiando e ao mesmo tempo abafando-lhe as vontades e o entusiasmo.

Ergue a cabeça, quase extenuada. Sente-se como um “eu” revisitado mil vezes, atuando na superfície do tempo, nas bordas do seu limite. Nada de sentimentos, sensações ou reflexões. Infinitas vezes sente-se vazia, pretérita, avessa.

Pega o copo com a mão trêmula e toma a água como se tentasse compensar a ausência de toda cor, de toda luz, de toda inspiração. E dizem que inspiração não existe! Mas o que seria dela sem as fagulhas que a incendeiam nos momentos de criação, de pura poesia?

Por essas coisas todas, sente-se só, extremamente só nesse momento de completa individualidade. A avalanche verborrágica de outros dias lhe falta quando dela mais precisa. Sente a ineficiência dos signos, dos sinais grafados na tela. Apagam-se as entrelinhas e resigna-se, por um instante, entretida com a melodia cadenciada. Mantém-se na superficialidade do pensamento, na marginalidade.

Portanto, hoje só há prosa. Uma escolha radical. Uma contradição. Tudo parece atemporal. Finalmente escreve. A música passa ao largo...