Letargia

Eu me deixava restar ali, entre atos e fatos, numa letargia mansa e densa, talvez um pouco como as emoções loucas.

Embalavam-me então, as fantasias e os sonhos, adensados pelas nossas longas conversas e teu amor, que me parecia qualquer coisa insana.

E eu me enroscava, entre as mornas sensações de um útero recordado.

Impassível... presa aquilo que não conseguia definir...se vida ou morte de amores,convulsionando dentro de mim.

...ou a promessa de uma nova vida, então desconhecida.

O fato é que, ao mesmo tempo em que, eu tinha consciência daquela minha imobilidade dormente, a ela eu me entregava, mais e mais.

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Hoje chovia, mas afogada em dores era minha alma, patética, vestida em lutos.

Olhava para além das coisas, como se elas, como eu, estivessem vazias.

Olhava até mesmo a vida, passando lá fora como um filme, aonde minha imaginação era a diretora passiva, deste espetáculo.

Câmera!!Ação!!

Novo ato.

-Começo a mudar minha posição... lentamente... Eu era como um feto, ainda não bem formado, saindo de sua placenta, algumas partes de mim, tinham que ser movidas com muito cuidado, pois se forçadas me abandonariam e ficariam ali, coladas.

Imagino a cena...

Isto daria um belo espetáculo... e se analisado sob a luz da psicologia freudiana, seria um prato cheio para se vomitar de volta

Luzes!!Ação...

Meu balé existencial continua, minha necessidade de delimitar espaços constituídos me persegue, é isto, tenho que ter tudo na minha medida, na minha batida perfeita, senão desatino.

Não consigo digerir este novo momento de vida, pedaços que se vão, novas cidades, casa nova, e desfazer-se é sempre tão mais difícil!

Queria minha janela sem sol, minha rotina diária entre aquelas paredes, aonde depois de muitos anos, tive liberdade e um pouco de paz..

Vou sentir falta, muita.

Os ruídos familiares, a síndica louca, as crianças e suas incomodas batidas de bolas Tum Tum Tum... nas paredes, Tum Tum Tum... quando o soninho da tarde vem chegando.

Até mesmo, tudo que me desagradava antes por aqui, agora na despedida, tem um brilho e uma cor inusitados.

Será que fica, parte de nossa energia desprendida... nas paredes, nos móveis, nas coisas?

Porque é tão difícil partir?

Agora reviso frenéticamente as caixas, recontando-as mil vezes, não posso esquecer nada, afinal na última mudança, lá se foram bens muito preciosos, uma caixa de fotografias das minhas crianças e outra de livros, aonde um Hilke de primeira edição que eu amava!

Sem minhas coisas, impossível montar meu quebra-cabeças existencial.

Sou muito apegada as este lixos, como fala minha amiga.

Tive a louca idéia, de que para sobreviver, deveríamos ser como as minhocas, possuidoras de vários órgãos duplos, principalmente o coração, rastejantes enfrentaríamos nossas mudanças sem medo.

Uma última passada pela casa... meu quarto, o último cômodo no final do corredor,é como se me olhasse de fora neste momento.

Mera expectadora de mim...

Bons sonhos quarto meu, que outros corpos acolhas com o mesmo propósito

No banheiro ainda escuto um gotejar, que por vezes me fazia perder o sono, preguiçosa de sair debaixo das cobertas, para apertar a torneira.

O quartel general da bagunça (quarto dos filhotes)... ainda revela vestígios de algumas batalhas...papéis e restos de infância restam ainda ali, me abaixo e entre este, agora Lixo, seguro entre meus dedos, um pequeno capacete de bombeiro,peça do primeiro Lego que comprei para Pedro, 14 anos fazem e que ele ainda,ha poucos dias remoia a idéia de presentear, meu neto Miguel, seu sobrinho.

Uma década, meu Deus e a gente nem percebe!

Quando aqui chegamos, tinha deixado outros sonhos, mas apesar de tudo, as surpresas da vida foram tantas!No corredor cerro a porta engasgada, cerro bem forte para que num gesto simbólico, suporte deixar tudo para trás e encarar a nova vida!Sempre tive uma alma cigana, mudar nunca foi para mim um problema, curiosa de vida e de mundo que sempre fui.

Deve ser o tempo e as coisas que se adicionam a nossas vidas, que nos faça valorizar mais tudo isto.

Incrível, mas agora percebo:

- Não desejo mais ter asas, nem voar alto, quero mais meu chão, a segurança ainda que ausente de surpresas.

Quero me deixar embalar, pelas minhas lembranças, da minha janela pro mar.