Certo Emanuel

Passeava eu, tranquilamente, com alguns amigos, pelas ruas e becos do Pelourinho. Era noite, as horas passaram tão depressa que não sabia precisar o horário quando do ocorrido.

O certo é que, subitamente, observei um menino, uma criança ainda, de uns onze anos, depois fiquei sabendo que só tinha nove. Estava parado, sentado em uma esquina de um daqueles becos acima mencionados. Vestia um short e uma camisa de um branco bem encardido, como se nunca tivessem sido lavados. Fite-o bem no fundo dos seus olhos, e ele nos meus. Permanecemos nos olhando por alguns minutos, tempo suficiente para eu fixar sua fisionomia.

Estava tão absorta com aquela figurinha magrinha e parda que esqueci os meus amigos, os quais me chamaram para a nossa realidade. Pedi uns segundos, pois queria continuar olhando para o menino solitário. E assim fiz, demorando-me mais um pouco, perdida na minha imensa curiosidade, que beirava a admiração.

Contudo, chamaram-me outra vez, e não consegui mais permanecer ali parada pintando mentalmente meu quadro acerca da vida daquela criança. Então, de forma discreta, tentei sorrir para ele, que continuou a me olhar sem nenhuma expressão mais afetiva. Ousei dar-lhe tchau, e sair andando em direção aos meus amigos. Minutos depois, resolvemos parar em um barzinho para tomarmos a cervejinha habitual. Foi quando alguém, por qualquer motivo, informou que já eram duas horas da manhã. Confesso que fiquei surpresa com o horário. Não por mim, costumava passar noites em claro bebendo e papeando com os amigos. Minha preocupação era com aquele menino franzino e descalço, sentado em uma calçada fria, assim tão tarde.

Foi quando interrompi a conversa animada dos amigos para lhes falar do garoto objeto dos meus pensamentos. Um dos meus amigos me disse que deveria tratar-se apenas de mais um menino de rua como tantos outros, mas para mim, não sei o porquê, havia algo de especial naquela criaturinha.

Não conseguia concentrar-me na conversa, de tanto que pensava no menino de branco encardido. Por esse motivo, depois de alguns copos de cerveja, resolvi ir até o local onde ele se encontrava, para tentar conversar um pouco, e descobri mais sobre sua vida. Foi o que eu fiz, mesmo sob os alertas dos companheiros de bar.

Voltei alguns metros e o encontrei no mesmo lugar, na mesma posição. Só que dessa vez com um cachimbo de crack nas mãos. Juro que isso me assustou um pouco, mas não o suficiente para me fazer desistir do meu intento.

Parei junto a ele e logo perguntei o seu nome. Como resposta ele disse: - para que a senhora quer saber? Assim começamos nosso diálogo. Respondi que era mera curiosidade, então, ele informou que se chamava Emanuel. Perguntei-lhe também se tinha família em Salvador, ao que ficou imóvel e calado. Percebi, de logo, que não seria fácil aquela aproximação, e resolvi ficar mais próxima dele, sentando-me no chão da esquina, bem do seu lado. Pareceu que minha conduta o pegou de surpresa, pois logo retrucou que ali não era lugar para mim. Ótimo, pensei, tinha conseguido achegar-me um pouco mais.

Por onde iria começar? Fiquei quieta por alguns instantes, porém logo voltei ao meu questionamento anterior. Dessa vez ele resolveu responder que sim, tinha família na cidade, mas que morava na rua há três anos.

Você não se entendi com seus pais? Não, disse o garoto, falou, ainda, que os pais só queriam explorá-lo e que o espancavam.

Entendi a situação ali explanada e não mais adentrei no assunto.

Meu interesse passou a ser o porquê dele estar usando crack, mas me pareceu muito lógicos os motivos. Deixei essa resposta por conta da minha imaginação.

Surpreendentemente foi ele que dessa vez questionou: - Como é o seu nome? O que você faz da vida? E onde mora? As três perguntas num só fôlego. Ao que respondi prontamente.

Agora, devidamente apresentados, pareceu-me que ele tinha ficado mais a vontade. Aproveitei o momento para continuar meus questionamentos. Comecei pelo uso da droga. É para matar o tempo, respondeu a criança.

Desejei falar-lhe sobre os malefícios daquela porcaria altamente viciante, mas, com certeza, ele sabia mais sobre o assunto do que eu. Engoli meu discurso.

No decorrer da nossa conversa, agora monossilábica, perguntei-lhe onde dormia. Enfim, deixou os monossílabos, e respondeu que dormia ali mesmo, embaixo da marquise de um determinado restaurante, tendo como cobertor um papelão.

Emanuel, eu falei, posso visitá-lo outras vezes? Você fica sempre neste local? Como resposta me deu um aceno com a cabeça de forma afirmativa. Continuei minha inquisição. A que horas costuma parar aqui: - Por volta das oito da noite e fico até meu cachimbo acabar.

Que coisa louca, mas pensei que aquele menino poderia ser meu filho. O que faria se, por ventura, tivesse um filho naquela situação?

No dia seguinte, lá estava eu conversando sem cerimônias com Emanuel, que me contou detalhes da sua vida difícil e triste.

Cometia pequenos furtos para manter o vício; comia o que lhe dessem, pois, se acaso recebia dinheiro, comprava crack.

Durante quatro semanas fui ao Pelourinho, sempre entre oito e nove horas da noite, conversar com Emanuel. Para mim se tornou um vício. Àquela altura já sabia tudo sobre sua vida e ele sobre a minha.

Em uma terça-feira de benção, como de costume, fui àquele local para tomar “cravinho” com os amigos. Foi quando dei por falta do garoto. Não resisti em buscar informações no boteco da esquina de Emanuel.

Para minha profunda tristeza, disseram-me que ele havia se envolvido em uma briga com outro menino de rua e que foi morto a facadas. As lágrimas corriam sem que eu conseguisse segurá-las. Chorei copiosamente. Ainda tive que suportar uma criatura me perguntar porque eu chorava por um menino de rua drogado. Tive vontade de dar-lhe na cara, mas não fiz nada disso. Minha tristeza era tão grande, que abandonei os amigos, sem nenhuma explicação, e retornei para casa.

Naquela noite não consegui dormir, assim como em outras. Somente pensava em Emanuel.

Semanas se passaram e eu ainda chorava por ele.

Mas um dia veio a minha mente uma ideia louca. Será que Emanuel era um anjo que se perdeu aqui embaixo? Esse pensamento começou a me confortar. Se fosse, realmente, um anjo, agora estaria no céu, longe do nosso inferno. Passei, então, a mentalizar a sua imagem como anjo. Foi o que me fez suportar a sua perda.

Hoje quando repenso em Emanuel, lembro-me daquelas crianças, que por necessidade, vivem nas ruas, bem como os moradores de rua, os quais igualmente por necessidade, expõem, sem ter outra opção, toda a sua família aos perigos provenientes do próprio viver nas avenidas, ruas e becos desse nosso imenso país.

Rita Santos

Enviado por Rita Santos em 11/06/2014

Reeditado em 10/03/2015

Código do texto: T4840476

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Crônica publicada na minha escrivaninha Rita Santos