O castigo do reencarnado

Tem gente que não se conforma com o curso natural da vida e faz qualquer coisa para trapacear com as leis da Natureza, o que equivale a dizer as leis de Deus.

Geremias de Sousa Cavalcante Andrade Gervásio, o GG, era fazendeiro na região do Bico do Papagaio, norte do Estado do Tocantins. Era considerado gente muito boa, pois tratava todo mundo com educação e gentileza, e era também admirado, porque a fazenda de semiárido que herdou do pai ele transformou num impressionante agronegócio.

Único defeito dele era que trabalhava por demais da conta. Não tinha filhos, nem casar casou, por falta de tempo. Tinha uma concubina a quem queria muito bem, que lhe acompanhava nos eventos sociais e que lhe fazia companhia nas horas íntimas do lar. Mas amor com ela só fez algumas vezes, quando ainda era jovem. Neiva, uma belíssima mulher, amava o marido e aceitava sua solidão em silêncio.

Às vezes a esposa perguntava se ele nunca iria parar de trabalhar tanto. Ele respondia que quando completasse 50 anos pararia de trabalhar e descansaria pelo resto da vida. E parecia que ele realmente pretendia fazer isso. A sede da fazenda tinha piscina, sauna, academia, quadra de esportes, salão de festas com cozinha industrial, cinema, capela, campo de golfe, e a cada ano GG acrescentava uma nova atração. Além disso, planejava comprar um iate apropriado para viajar o mundo inteiro.

Aconteceu, no entanto, que ao completar 40 anos ele ficou doente. Contraiu um câncer que médico nenhum conseguia curar. Parecia que os planos de GG estavam destinados ao fracasso. Mas, por estranho que parecesse, ele continuava trabalhando, à base de remédios e morfina, como se nada fosse impedi-lo de viver muitas décadas mais, para usufruir o patrimônio que estava construindo. "Vocês vão ver, aguardem", dizia ele, com ar de mistério.

Um belo dia, GG propôs à esposa terem um filho. Neiva ficou feliz, amou o marido como nunca antes. O casal até viajou para os Estados Unidos, onde foram consultar médicos que garantiriam o sucesso da gravidez.

Transcorreram três meses dessa lua de mel, até que numa certa manhã GG apareceu morto. Foi encontrado sentado em sua poltrona preferida, com uma baioneta enfiada no fígado, o sangue formando um lago escuro no chão de madeira maciça da sala. Ao lado do corpo, os criados encontraram uma garrafa de absinto pela metade, a taça, um livro com capa preta onde se lia o nome do autor: São Cipriano. Todo mundo ficou espantado, pois ninguém nunca tinha suspeitado que aquele empresário de espírito tão pragmático mexia com essas coisas de feitiçaria. E havia também um pedaço de papel onde se lia: "Meu filho se chamará Geremias de Sousa Cavalcante Andrade Gervásio Segundo. Deixem tudo como está, para o dia em que ele nascer".

O delegado de polícia não teve dúvidas que GG havia se suicidado. Ninguém duvidou disso, e quem o conhecia na intimidade não duvidava que sua intenção era voltar ao mundo dos vivos, depois de morto.

Seis meses depois daquela triste manhã, a sede da fazenda se encheu de alegria: GG Segundo nasceu, saudável e forte, a cara do falecido pai. O bebê cresceu em meio a muita alegria, se tornou um menino, depois adolescente, por fim um belo jovem, e quem o visse dizia que era o próprio pai vivendo nele.

Dezoito anos passaram-se e a alegria acabou. Num dia calmo, a camisa branca de linho do jovem "do nada" manchou-se de sangue no lado direito, na presença da mãe e de vários empregados. Foram olhar, tinha uma ferida na altura do fígado. A ferida sangrou e GG morreu de hipovolemia em questão de minutos, numa enorme poça de sangue, antes que qualquer socorro médico pudesse chegar.

O delegado da cidade solicitou uma necropsia, pois a ferida mortal de GG Segundo parecia mesmo o furo de uma lâmina. O médico legista, de fato, atestou no seu laudo que a morte ocorreu por hipovolemia provocada por instrumento pérfuro-cortante. O inquérito contudo foi inconclusivo, pois não foi encontrada qualquer arma compatível com o ferimento, e todas as testemunhas, que eram muitas, foram unânimes em afirmar que o sangramento surgiu do nada, sem mais nem menos, na frente de todo mundo. Não houve suicídio nem homicídio, aconteceu o fato mais estranho, algo inimaginável.

Inclusive Neiva, a mãe, viu tudo acontecer exatamente dessa forma. No seu depoimento, nada disse além do que viu, naquele dia, hora e lugar fatídicos. Mas desde então se tornou uma pessoa religiosa, rezando dia e noite pela alma do marido e do filho, que acredita serem a mesma pessoa, que suicidou-se uma vez e morreu duas, pois era sua hora de prestar contas ao Criador.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 09/05/2024
Reeditado em 24/08/2024
Código do texto: T8059783
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