O mundo perdeu a voz

O mundo agia de forma preocupante, sonhos não mais existiam, a maldade impregnava o coração dos homens, a violência tomava conta das cidades, o saber não mais importava, o dinheiro tinha poder exagerado, o homem havia se esquecido de Deus, o coração humano há não tinha mais fé, os princípios eram insignificantes, os erros humanos ultrapassavam todos os limites, o homem não dava valor as coisas simples, e observando tudo isso lá de cima, aquele que ama incondicionalmente os que não merecem, resolve miraculosamente intervir. Não posso entender seu ato, sou humana de mais para entender sua escolha de amar a quem não é digno, sou humana de mais para compreender se o que recebi foi um presente ou um castigo, sou humana demais para saber se fiz a escolha certa.

Era outono em uma tarde de ventos gélidos e sombrios com uma tênue chuva que acalentava os corações vazios. O sol já não aparecia há alguns dias, a escuridão já nos rondava a espreita sem que percebêssemos. Ventos sombrios sopravam, pareciam tentar dizer algo, talvez quisessem avisar que alguma coisa estava prestes a acontecer.

As folhas das árvores caiam sobre a calçada e eram arrastadas pelas gotas da chuva. Raios e trovões soavam nos céus fazendo animais assustados correr em busca de abrigo. O alaranjado das folhas de outono cobria as ruas e a chuva ainda calma parecia o pranto que Deus derramava, sentindo seu coração frio pelo que estava prestes a fazer.

Pessoas andavam apressadas, buscando satisfazer seu mundo fútil, acho que nem sequer se davam conta do quão bela aquela tarde se fazia, acho que nem se davam conta da tamanha felicidade que possuíam e dos inúmeros presentes que já haviam recebido.

A solidão sempre me impregnou, mas foi em sua companhia que tive meus melhores momentos. Somente só conseguia verdadeiramente compreender o que se passava ao meu redor e dar as simples coisas o valor que realmente merecem.

De longe eu observava aquela tarde, através das janelas que me aprisionavam. Eu via as gotas escorrerem pelo vidro e como por um presságio elas me lembravam lágrimas.

Os pingos de chuva escorriam pela face das pessoas e o vento uivava com tom gélido e mórbido. Com casacos encharcados e guarda-chuvas que já não agüentavam mais conter a chuva, ou embrenhados no vazio de seus carros. Trancados em suas imensas casas, ou rodeados de trabalho por todos os lados, cheios de preocupações tolas e vãs, preocupando-se somente consigo mesmos, os homens queixavam-se de suas vidas e deixavam passar as suas voltas a tarde mais linda que já vi.

Uma névoa cobria o céu, misturando-se com as nuvens negras. Alua e as estrelas não apareceram e eu permaneci ali por horas, a contemplar aquela tarde tão sombria e bela. Já começava a anoitecer e as pessoas saíam de seus trabalhos, e andavam com tanta pressa que deixavam o mundo passar despercebido. Foi então que um barulho estrondoso veio dos céus e afligiu o mundo inteiro. Era ensurdecedor, algo forte e temível, mas por incrível que pareça não tive o menor medo. Tudo o que senti foi uma imensa dor, que inundou meu ser, como se eu estivesse pressentindo tudo o que aconteceria a seguir.

Assustadas com estes estampidos surdos que vinham do céu, as pessoas de toda a terra deixaram seus lares, abandonaram suas casas e saíram ás ruas. Lotaram imensas avenidas, invadiram calçadas e pontes. Caladas e com seus rostos voltados para o céu, sentiam as gotas de chuva escorrer em suas faces, misturando-se as lágrimas que amedrontadas derramavam.

Foi então que o último estrondo daquele dia soou, um raio veio do céu e atingiu a terra, fazendo o chão tremer e as folhas de outono que nele repousavam debruçadas, agitarem-se sobre o solo.

Uma névoa negra subiu da superfície da terra e encobriu a humanidade, que voltada para o céu, acreditava presenciar o fim dos tempos. Eu não podia acreditar no que estava vendo, mas por mais impossível que pareça, tudo aquilo foi real.

De repente, após o nevoeiro ter encoberto as pessoas, os estrondos cessaram, os ventos calaram-se, um silêncio pavoroso encobriu o mundo e unicamente uma sutil garoa continuou a cair, aos poucos desfazendo a neblina que encobria rarefeitamente os humanos. Conforme a névoa era desfeita eu podia observar os rostos pálidos e os olhos inundados de lágrimas, congelados em seu momento de maior horror. Petrificados em meio ao desespero daquele instante. Eu estava incrédula, aquilo só poderia ser um sonho! Mas não era. Aquela era minha realidade e eu precisava enfrentá-la.

Quando a névoa se desfez totalmente, eu deixei minha casa e fui para a rua. Em ato desesperador eu tocava as pessoas e podia as sentir frias, geladas como pedra. Eu via as pessoas que amava, minha família, meus amigos, meu amor, eu via todos trancados em um corpo de pedra, congelados naquele momento de horror. Minha cabeça estava um turbilhão de emoções contrárias, tudo aquilo era impossível, porém real. Foi então que me ajoelhei ao chão, junto as estátuas da humanidade, junto aqueles que mais amava e somente deixei que minhas lágrimas se libertassem.

Ao tocar o solo, minhas doloridas lágrimas fizeram com que outra névoa se formasse, e novamente encobrisse a humanidade, agora petrificada. Posso me lembrar de suas expressões de horror, do seu sofrimento, posso me lembrar de suas faces assustadas, posso lembrar-me de seus rostos amedrontados e estarrecidos. Pouco a pouco a camada de pedra que envolvia as pessoas foi se quebrando, a pedra era rachada, partia, estava se desfazendo. Esta pedra que os envolvia representava quão frio eram seus corações, agora, com minhas lágrimas eu lhes devolvia a vida, porém Deus já havia os roubado algo e isso eu não pude devolver.

Enquanto a fortaleza de pedra que os contornava era desfeita, eu podia avistar corpos caindo no chão inconscientes, inertes em sono profundo.

Enfim todos já haviam deixado de ser estátuas, e só ai eu percebi, que era a única no mundo que não havia passado por tudo aquilo. Eu não era especial, eu nunca fui perfeita, eu nunca fui melhor que os demais, eu não era a pessoa com mais fé e nem mesmo a pessoa mais nobre, então porque Deus estava me poupando de tudo aquilo, ou será que eu não estava sendo poupada, e sim castigada?

Sou humana demais para entender a vontade divina, sendo assim, só me resta aceita-la, sou humana demais para entender o que se passou naquela tarde, apenas sei que aquele dia mudou completamente a minha vida.

Uma leve chuva continuava a cair e eu ali, ajoelhada no meio da rua, com meu rosto tocando o asfalto e com minhas lágrimas juntando-se a chuva. Eu estava sozinha em meio a uma multidão de corpos inconscientes. Eu não sabia o que fazer, eu não sabia como agir. As únicas coisas que eu possuía eram uma dor tão profunda que dilacerava minha alma e um medo aterrador da incerteza do futuro. Involuntariamente debrucei-me sobre o peito daquele que eu acreditava ser minha alma gêmea, e com meu rosto ao lado do dele, adormeci em meio à chuva, em meio a uma multidão de inconscientes e em meio ao gosto salgado de minhas lágrimas que não podia conter.

Ao despertar pela manhã, me dei conta de que não havia sonhado, percebi que tudo aquilo e real. As pessoas aos poucos levantavam-se, despertavam, libertavam-se de sua maior prisão. Todas voltaram para os seus lares sem dizer palavra alguma, mal sabia eu que elas jamais voltariam a falar.

Quando percebi que as pessoas começavam a despertar, corri até elas e as perguntei se estavam bem, as perguntei o que havia acontecido, as perguntei como se sentiam. Fiquei sem resposta. Nenhuma delas me disse nem sequer uma palavra. Nenhuma delas voltou a dizer uma palavra depois daquele dia. Quando eu as olhava e tentava falar com elas, elas desviavam seus olhos de mim, quando eu as pedia algo, seus olhos enchiam-se de lágrimas e minhas respostas ficavam sempre no amargor de seus olhares.

Percebi então, que eu havia lhes devolvido a vida e Deus havia lhes roubado a expressão. Seus lábios não mais pronunciavam uma palavra sequer. De suas bocas nenhuma frase saía, seus lábios não mais falavam e não mais sorriam. Deus havia lhes roubado a coisa mais simples e mais importante que possuíam, a fala.

Naquele dia todas as linguagens do mundo desapareceram, todos os idiomas se extinguiram, todos os livros se calaram, todas as escritas foram esquecidas, toda a comunicação entre os humanos se acabou.

Eu estava só, mais só do que nunca. Eu estava em meio a uma multidão eternamente calada. Eu não tinha com quem falar, eu não tinha alguém que me entendesse. Eu estava isolada em um mundo de palavras só minhas, que confundiam e amarguravam minha mente, mas eu jamais poderia voltar a compartilha-las.

Eu precisava mudar isso, eu precisava falar com alguém. Justo eu que sempre amei o silêncio e apreciei a solidão, me sentia mortalmente triste em um mundo amargo de silêncio eterno, e solidão enlouquecedora.

Eu andei pelas ruas, corri buscando alguém capaz de ouvir e entender meus gritos desesperados. Fracassei. Por todos os cantos, além das fronteiras entre países, apenas encontrei bocas que nada diziam e lábios que não mais sorriam.

Decidi então que precisava ensinar novamente as pessoas a se comunicar, afinal, muito mais do que elas, eu precisava falar com alguém. Alguém que ouvisse minhas perguntas e não me olhasse com olhos vagos e transbordando em lágrimas, mas que somente fosse capaz de respondê-las. Alguém que entendesse minhas súplicas e meus apelos. Alguém que cantasse comigo, que escrevesse comigo, que desenhasse comigo, que se expressasse comigo.

Aos poucos o mundo foi se tornando um verdadeiro caos. Sem se falar as pessoas não podiam trabalhar, não existiam mais compras, vendas, dinheiro ou lojas. Atores e cantores ficaram desempregados, pois não sabiam mais cantar ou atuar. Lojistas perderam suas vendas, pois as pessoas não podiam se comunicar para informar o que desejavam ou quanto algo custava.

Fábricas pararam, pois não havia ninguém capaz de dar as ordens de funcionamento e muito menos alguém capaz de entendê-las. Escritores não mais escreviam, poetas não mais compunham, desenhistas já não desenhavam, o mundo estava sem expressão. As guerras se descontrolaram, pois as pessoas não podiam dar ou receber ordens, elas simplesmente agiam como queriam, faziam o que queriam e assim a desordem acontecia.

Políticos não conseguiam mais comunicar-se para manter seus territórios sob controle. Agricultores não mais produziam, e nem mesmo o alimento era obtido, porque as pessoas não podiam pega-lo, compra-lo ou pagá-lo.

Estudantes não mais estudavam, professores não podiam mais ensinar, pessoas morriam porque os médicos não podiam se comunicar para atende-las, e elas não podiam dizer seus sintomas. Se alguém precisasse de um remédio, não o teria por não poder se comunicar com os farmacêuticos. Dentistas não mais trabalhavam por não poder se comunicar com os pacientes. Bombeiros não conseguiam apagar incêndios, pois não poderiam ser chamados, nem comunicar-se entre si. Grandes empresários perderam suas empresas, profissionais de todas as áreas, nas mais diversas partes do mundo abandonaram seus empregos, nada mais se produzia, nada mais se comprava ou vendia, e tudo o que antes tinha tanto valor, acabou-se com a perda de algo tão simples. O dinheiro perdeu o valor, a pressa para chegar pontualmente não interessava mais, um bom emprego não mais existia, os sonhos materiais se desfizeram um a um. As pessoas estavam ficando insanas, tristes e deprimidas por falta de se comunicar.

A humanidade ficou em estado de calamidade, o mundo parou, e eu ali, aos prantos, desesperada, imaginando até quando este pesadelo iria durar.

Deus provou ao homem a importância das coisas simples, mas eu era diferente de todos eles naquele momento. Eu havia sido a única que não perdeu a linguagem, não sei porque, talvez eu nuca saiba, afinal minha condição humana não me permite entender se naquele dia recebi um lindo presente ou um terrível castigo.

Os dias passavam e cada vez mais os problemas aumentavam. As pessoas perderam tudo o que tinham e mais que coisas materiais, junto com a expressão perderam o amor, a amizade, a felicidade. Lágrimas, somente lágrimas expressavam a emoção e a tristeza dos humanos.

Sorrisos eu nuca mais vi depois daquela tarde derradeira. Olhava incessantemente ao meu redor, necessitando ver em algum lugar um resquício de felicidade, porém meus olhares a esmo, já sem esperança, foram em vão, pois os últimos sorrisos que vi, eram só lembranças, que se apagaram junto ao sal do mar de lágrimas que os homens deixavam enfim rolar sob suas faces entristecidas.

Eu não podia mais agüentar isso, eu precisava de alguém, e ao olhar para os lábios eternamente calados e entristecidos que me cercavam, decidi que ao menos tentaria reverter aquela situação.

Em um ato de profundo desespero, recolhi todos os materiais que pude, e saí pela cidade, escrevendo o que sentia nas paredes das casas, nas janelas e portas dos prédios e edifícios, nas placas das ruas, nos muros, nos carros e nos asfaltos. Saí pela rua em desespero sem igual, sem direção alguma, desenhando meus sentimentos em qualquer lugar, eu precisava de alguém que me entendesse, me ouvisse, eu precisava me expressar, eu precisava libertar esse mundo de palavras só minhas que já estavam me enlouquecendo. Desenhei o que sentia em muitas ruas, em vários países. Durante dias tentei em vão aliviar a necessidade que meu coração tinha de se expressar.

Tolamente distribui panfletos que ninguém leu, disse palavras que ninguém entendeu, corri para todos os cantos buscando alguém que pudesse me entender. Não havia línguas, idiomas, letras, palavras, ninguém me entendia. Minhas tantas tentativas fracassaram ao tentar ensinar os outros a se comunicar.

Eu já não podia suportar, era maior do que eu, e muito mais forte, eu precisava me expressar. Sabia que seria em vão, mas gastava todas as minhas forças retratando meus sentimentos nos lugares mais visíveis, mesmo sabendo que eles estariam invisíveis por ninguém entende-los.

As pessoas nas ruas lançavam-me olhares céticos, descrentes, estupefatos, observavam em mim uma loucura que até mesmo eu podia sentir. Todos me julgavam em seus pensamentos, como a pessoa mais estranha, como alguém anormal, completamente insana. Eu podia perceber com seus olhares, na frieza e no medo com que me olhavam, eu podia perceber o quanto estavam me odiando naquele momento.

Eu gastei todas as minhas forças tentando expressar meus sentimentos, mas ninguém me entendeu, eu estava só, sozinha em uma multidão. Eu precisava unicamente de alguém que me ouvisse, que me entendesse, porém não encontrei.

Eu já não tinha mais forças para continuar, uma tristeza imensamente grande tomou conta de mim. Eu sabia que logo o mundo acabaria, e isso era só uma questão de tempo, mas eu também sabia, que se alguém podia fazer alguma coisa para impedir que isso ocorresse, esse alguém era eu. Porém minhas forças se esgotaram em meio a tantos fracassos, minhas lágrimas secaram de tanto cair.

Eu nunca tinha percebido o quanto precisava me expressar, eu nunca tinha me dado conta do quanto é importante se comunicar, e agora o mundo estava chegando ao fim, eu precisava tanto falar, me expressar, mas ninguém podia me entender. E ali com um monte de palavras reverberando em minha mente, comecei a gritar, contando uma história que eu sabia que nunca ninguém iria ouvir, e muito menos entender, a minha história, esta que guardei em segredo por toda a vida, entre meu silêncio e minha solidão.

Acho que eu estava esperando alguém perfeito para compartilhar minha história, para conhecer minha vida. Eu estava esperando o momento certo para contá-la. Porém, agora eu não tinha mais tempo, e neste momento eu estaria contando minha vida, esta que guardei calada e sempre dentro de mim, a alguém tão perfeito que não vai me ouvir, num momento tão perfeito onde ninguém podia me entender.

Guardei tudo em segredo até aquele dia, e o que sou continuará em segredo, pois quando finalmente arranjei forças para contar, não encontrei ninguém que pudesse me ouvir.

Ali, no meio da rua, com a tempestade a cair sobre mim, e com o vento sobre meus cabelos, sentindo a brisa leve do mar tocando meus lábios, percebendo as folhas do outono se agitarem no chão, e deixando minhas lágrimas novamente fugir, eu gritei minha história aos quatro ventos, mesmo sabendo que nunca ninguém iria conhece-la.

A noite chegou, esgotada pelas forças que inutilmente gastei, finalmente dei-me por vencida.

Adormeci em meio as sombras e junto ao meu pranto, e novamente sozinha no asfalto. Ao acordar pude sentir o gosto salgado de minhas lágrimas em meus lábios, pois durante a noite toda elas continuaram a se esvair. O crepúsculo da noite havia passado, a chuva cessou, e ao despertar deparei-me com o alvorecer do dia.

Arranquei forças não sei de onde, e juntando toda a minha tristeza voltei para casa. Lá recolhi alguns papéis e uma caneta e vim para o cais, na beira do mar, entre as palmeiras, vendo o nascer do sol e a liberdade dos pássaros, deixando que minhas lágrimas se misturassem ás águas salgadas do mar, sentindo a areia sob meus pés e o vento soprando em meu rosto, no momento mais mágico da minha vida.

Esqueci da tristeza e do sofrimento da solidão e do silêncio forçados com os quais estava vivendo, e ali comecei a escrever estas linhas, contando nelas a minha história, mesmo sabendo que ninguém viria a conhece-la, afinal o mundo não mais me entende, mas eu preciso falar, e essa se faz minha maior precisão, por isso estas linhas escrevo, apesar de saber que elas jamais serão lidas.

Deixo contada a minha história, pois sei que o mundo logo irá acabar, do jeito que todas as coisas estão, todas as pessoas morrerão, e eu não suportaria isso. Portanto registro aqui minha vida, para que continue esquecida, pois agora eu vou para o mar, deixar que minhas lágrimas o aumentem para que nele eu possa me afogar antes que eu veja a humanidade se acabar.

Assim termino essa história, contando o que vivi, e a deixando sobre o cais, momentos antes de partir, pois de nada adianta viver, se o mundo não me escutar e se palavras não puder dizer, se o que sinto não puder expressar.

Vou ao mar pra que ele me afogue, e afogue a necessidade que sinto de expressar-me, já que agora ninguém pode me entender.

Marina Dalmass
Enviado por Marina Dalmass em 25/01/2009
Código do texto: T1403909