Uma nação belicosa

J. não sabia mais o que falar. As pessoas não tinham gostado muito de sua parábola, nem de seu discurso sobre as assim chamadas sociedades belicosas. Seu discurso estava enveredando perigosamente para o social, para a área em que a guerra sempre esteve presente. Refletir é próprio do homem, mas muitos homens não refletem, muitos matam sem refletir.

Havia dito: “Uma belicosa nação, organizada sobre a escravidão e a exploração, comerciava e industriava. Prosperava. Se civilizava. Tudo para a maior glória do homem. Preparava-se para fazer a guerra com outra belicosa nação que da mesma forma aparecera. Estavam os dois exércitos prontos para a confrontação, quando, felizmente, um magnífico terremoto impediu a guerra. Houve muitos milhares de mortos. As cidades foram destruídas. A produção desorganizada. Mas guerra não houve. Muitos anos passaram os homens reconstruindo e recolocando nos seus lugares as pedras com que costumavam instituir a sua glória e esplendor. Senhores, soldados, escravos, sacerdotes, tudo havia desaparecido. Trabalhavam lado a lado os sobreviventes com a única intenção de continuar sobrevivendo. No entanto a riqueza aumentou e se acumulou. Com o tempo devedores viraram escravos, ricos viraram senhores. Quem nada sabia fazer virou soldado ou sacerdote. Estavam agora prontos para a conquista. Afiavam as suas garras quando um providencial maremoto arrasou o país e evitou a retomada da guerra. Assim tiveram que recomeçar do zero. E sempre que atingiam o ponto de guerra algum fenômeno natural a impedia mesmo que as custas de muitas mortes e destruição.

Essa história, como sabemos, é impossível. Porque os desastres naturais não ocorrem com data marcada. Porem é certo que ocorrem. O homem não necessita procurar por si só a destruição. Basta que tenha paciência que a destruição vem até ele. Poderíamos abençoar as gerações que viveram em períodos em que não houve a destruição. Pois como custa aos homens construir essas sociedades belicosas, fundadas sobre o egoísmo. Como podemos dedicar nossas vidas inteiras a isso? Mesmo que esteja nesse momento dedicado a colocar um simples botão numa camisa, esse ato não é isolado. Ele pode estar contribuindo para essa sociedade belicosa. Se o espirito de luta é próprio de homem, não é em absoluto próprio do homem criar sociedades belicosas. Isso não é um fenômeno natural. Mas tem ocorrido freqüentemente até hoje. O que é próprio do homem é refletir.

Ou não seria nada disso. As coisas são assim mesmo e aos homens nada mais resta do que continuar fazendo essas bobagens que eles fazem mesmo. Violência e mais violência, a luta por amor e glória até o final dos tempos, que afinal de contas pode não estar tão longe assim. Jainito não tinha amigos. Nem mestres. E a gente sabe que o mundo não carece de mestres e sim de discípulos. Meditar, meditar muitos anos diante de uma parede branca. Como Bodidarma, mas também como ele não esquecer de praticar uns bons golpes de karatê, e quebrar uns narizes de vez em quando. Havia se metido a fazer discursos para uns desclassificados. Agora suas idéias se embaralhavam cada vez mais e sua pretensa sabedoria descambava para as questões sociais. Se via fazendo discursos perigosamente políticos. Não sabia mais se valia a pena investir no pessoal, ou se era melhor partir para a luta aberta contra os vilões da história, os aproveitadores e exploradores do trabalho do povinho simples e ignorante. Mais fácil era falar para as gatas da zona sul. Garotas lindíssimas e que acreditavam em praticamente tudo o que ele dizia. Bons tempos de palestras em salões elegantes e difíceis posições de ioga. Ficava de cabeça para baixo entoando um mantra por quinze minutos e todo mundo se maravilhava. Por que fora se meter a pregar para os necessitados? Consta que um desses monges doidos de antigamente ao resolver consolar os criminosos cometeu um crime apenas para ter acesso ao presídio. Não faria uma coisa dessas no Brasil. Correria o risco de ter o seu santo cu enrabado, nesses cubículos super povoados, nesses labirintos de ratinhos que são as cadeias modernas. O conde de Monte Cristo poderia se considerar um privilegiado, porque pelo menos tinha uma cela só para ele. Mas Jainito sabia que era assim mesmo. Não havia palavra capaz de convencer pessoas. Suas lições mais eficientes provinham do exemplo, da ação pura. Como Cristo na cruz. Como Thoreau nos bosques. Como Robespierre na guilhotina. Como Cabral nas caravelas. Como Cortez arrancando o coração dos aztecas. Como Pelé dando a paradinha nos pênaltis. Bom para quem viu, para quem testemunhou. Quem não viu tem que se contentar com palavras dos outros. E porisso que tanta gente se mete a fazer depoimentos. Ou a fazer jornais. Querem fazer a cabeça dos outros. Essa é que é a verdadeira guerra de conquista. E é porisso também que Jainito se meteu a falar. Era o seu tempo de falar. Tinha certeza que dai a pouco ficaria calado para sempre encarando outro muro branco por mais nove anos. Falava e falava muito em qualquer lugar ou hora. Andava pelos mais estranhos recantos a procura da sua audiência. Muitos o consideravam apenas mais um louco daqueles que acham que é Napoleão. Ele se achava a reedição de um iluminado. Por que o pensamento da iluminação começa quando se percebe a transitoriedade das coisas. E o fazer compassivo é como lançar pontes sobre rios ou barcos no mar, porque permite que as pessoas façam as suas travessias. Assim qualquer trabalho e qualquer ação deve ser isso. Construir pontes, lançar barcos.

Percorrer o mundo dos pobres e levar um choque a cada momento. Isso não pode ser simplesmente carma. Isso é pura sacanagem. Vai dai que de vez em quando suas palavras esbarram numa incitação a luta. Se é que alguém o entende. Para ele a luta é plenamente justificável. Alias, tudo é plenamente justificável, porque nada está escrito. Tudo está acontecendo exatamente pela primeira vez. Por mais que nos revoltemos com as atrocidades cometidas, elas são como o vento. São forças da natureza. Mas esse ventinho humano pode ser controlado e desviado por outros caminhos. Nesse mundo todos os povos já cometeram atrocidades. E todos posam de vítimas. Violentar uma só pessoa é como violentar toda a humanidade. Matar uma só pessoa é como matar toda a humanidade. Porque matar e violentar não é próprio da natureza humana. Isso acontece porque os homens estão metidos em labirintos de ratos. São como ratos loucos a procura de uma saída do labirinto. Querem dar uma olhadinha no que existe do lado de lá do muro do labirinto. Ou se desistem de achar a saída, se dedicam a uma atividade insana, que não passa de um passatempo, de uma diversão, como mandar foguetes a lua, ganhar dinheiro, descobrir as américas imaginárias que devem existir por aí, com ruas cobertas de ouro e índios bobos que trocam terra por cacos de vidro, e se maravilham com bacamartes.

(de A.Q.D.M.)